O que sou

Nas apresentações escolares, minha atuação acontecia sempre nos bastidores. Ficava encarregada de estudar o conteúdo, organizá-lo em tópicos e transcrevê-lo numa cartolina, o meio de que nos utilizávamos para expor o assunto que iríamos explicar.

Na classe, essa era uma das formas que exercia liderança. E tinha até mesmo a autoridade de incluir nomes de colegas que sequer contribuíam para o trabalho, no entanto, jamais negava que eles também figurassem como representantes do grupo.

A única coisa a que me recusava fazer era dirigir-me à frente para falar ou apresentar oralmente a tarefa. Mal levantava a voz a fim de tirar as dúvidas que me surgiam, de modo que acabei me tornando autodidata, quem sabe, para não precisar ficar perguntando coisas em meio à turma. 

Acontece que eu era tomada de uma vergonha que mal posso explicar. Conversar com os colegas na sala ou durante o intervalo ou diretamente com os professores não me intimidava. Mas falar e chamar a atenção para mim diante de todos era impensável.

Sempre preferi escrever a falar. Tenho a impressão de que escrevendo consigo organizar mais acertadamente as ideias e expor de modo mais claro a essência do que quero transmitir. 

E não tenho dúvidas de que escrevo melhor do que falo, de tal modo que, quando assisti a uma entrevista da escritora Nélida Piñon, em que revela que sua mãe chamou-lhe a atenção para que se expressasse oralmente melhor, pois uma escritora deveria falar tão bem quanto escreve, pensei em mim mesma cujas palavras costumam escapar e não corresponder exatamente ao que pretendo dizer.

E se as digo quando escrevo, a confiança é minha principal aliada. Não tenho inseguranças, medos ou pudores de tocar nos assuntos que toco, nem me percebo cambaleante ao abordar ideias que podem provocar ou até mesmo chocar.

Mas se sou convidada a me apresentar publicamente, a falar diante de uma plateia, mesmo que seja de poucas pessoas, até conhecidas, o pavor toma conta de mim. A boca resseca, as palavras fogem, a preocupação me invade, meus movimentos se paralisam, as mãos suam frio e tantos outros fenômenos se desencadeiam no meu corpo a ponto de eu ter vontade de fugir e deixar todos boquiabertos diante da revelação de que sou uma verdadeira farsa.

E o pior é que nem posso me utilizar do escudo da timidez, pois não sou inteiramente tímida. Apenas parcialmente. E aí Clarice Lispector me salva quando diz: "Sou tímida e ousada ao mesmo tempo." Ou: "Eu sou uma tímida arrojada. Sou tímida, mas me lanço." Ousada também, à medida que me pego surpresa diante de minhas próprias ousadias que nem ouso contar.

Ocorre que volta e meia, como escritora e psicanalista, sou instada a falar sobre determinadas coisas. E nem sempre posso me pôr em fuga, já que não admiro o ato de fugir ou de se esconder. Preciso bancar não só as ideias que exteriorizo, a coragem que considero fundamental como também a superação de meus próprios medos. Preciso deixar vir à tona em mim o que provoco e convoco no outro.

E nessa de tentar me superar é que me lancei a tudo aquilo que me disseram poder contribuir para que eu destrave. Além do estudo de oratória, de curso para enfrentamento de transtorno social, também resolvi frequentar aulas de teatro, com o fim de trabalhar a inibição que tanto me incomoda.

As aulas de teatro demandam interação com o grupo, e em nenhum outro lugar me sinto tão exposta e desprovida de garantias como quando estou no palco. Pasmem: é o único lugar público do qual não me valho de um salto alto que tanto me acompanha. Fico com os pés descalços, apoiada apenas no meu próprio tamanho.

Sou uma pessoa, palavra que vem de persona, a máscara utilizada no teatro para representar. E, talvez, justamente pela uso da máscara, ou por representar outro, conseguimos ser mais verdadeiros que em outros lugares.

Érico Veríssimo disse desconfiar que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo. No palco do teatro, se nos recusarmos a ser ridículos é melhor quem nem entremos em cena.

Talvez, mais que tudo, eu necessite me valer da coragem de expor minhas fragilidades. Talvez, não precise me proteger tanto de me mostrar imperfeita. Talvez, eu tenha de ter paciência comigo mesma e me compadecer com as próprias falhas. 

Talvez, eu tenha de ser mais forte do que eu, a ponto de atuar no mundo conforme as palavras de Clarice: "Vou continuar, é exatamente da minha natureza nunca me sentir ridícula, eu me aventuro sempre, entro em todos os palcos."

A verdade é que nunca me sinto pronta. Há algo dentro de mim que me espreita e põe a prova, que me constrange e paralisa, ainda que as vozes ao meu redor ecoem frases de incentivo e de confiança que eu mesma não tenho quando se trata de falar publicamente. 

Creio que os outros com seus olhares nada têm a ver com isso, pelo contrário, tenho a sorte de estar rodeada de pessoas que me potencializam mais do que sou capaz de fazer a partir de minha própria força. Sou eu, diz Clarice, o monte intransponível no meu caminho.

É ela quem também ressoa essas palavras que me servem: "Eu nunca fui livre a vida inteira. Por dentro eu sempre me persegui (...) Vivo numa dualidade dilacerante. Eu tenho uma aparente liberdade, mas estou presa dentro de mim. Eu queria uma liberdade olímpica."

Sim. 

Eu, o obstáculo que devo transpor para vencer o medo de bancar a grandeza e o ridículo de ser o que sou.

Sou eu o meu impedimento maior.



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