Você TOPA se topar com o seu desejo?

Nunca é demais lembrar como se deu o surgimento da Psicanálise. Sigmund Freud, neurologista vienense, ao atender pacientes com histeria, percebeu que os conhecimentos médicos e científicos da época não eram suficientes para lidar com a especificidade da doença que se apresentava. Mesmo diante da irrefutabilidade dos sintomas presentes, principalmente em mulheres, não havia nenhuma causa orgânica ou física que os explicassem. Portanto, a medicina mostrou-se incapaz de dar respostas e de oferecer possíveis caminhos para a cura da histeria.

Assim, Freud partiu rumo à França, a fim de aprender com Charcot o modo como este tratava as histéricas. Conheceu a hipnose, com a qual pouco trabalhou, mas que figurou, tal qual o modelo catártico, como uma das etapas até se chegar ao método psicanalítico.

Freud se dispôs a ouvir as pacientes, a deixar que dissessem o que sabiam de si mesmas e de suas histórias. Num de seus atendimentos, ao interromper várias vezes uma paciente enquanto ela falava, foi surpreendido com o pedido dela de que a deixasse falar sem interrupções.

Daí surgiu o reconhecimento da escuta como algo essencial para que o processo analítico fosse possível. Ao escutá-las, Freud chegou à conclusão de que os sintomas presentes nas histéricas eram formações substitutivas de desejos reprimidos, os quais precisavam ser elaborados no processo analítico para que houvesse a diminuição ou extirpação das manifestações sintomáticas.

Freud fundou a psicanálise, cujo marco foi a publicação da obra "A intepretação dos sonhos", em 1900. De lá para cá, a psicanálise continua sendo pensada e reelaborada por psicanalistas e por aqueles que a enxergam como importante ferramenta de transformação individual e coletiva.

A psicanálise, em seus conceitos e prática, deve ser permanentemente desenvolvida, pois visa atender a demandas específicas e subjetivas dentro de determinado contexto que se altera ao longo do tempo. Os momentos histórico, político, econômico, cultural e social em que Freud criou as bases da psicanálise já não são mais os mesmos. No entanto, o fator humano psíquico e intrassubjetivo, ou melhor, a manutenção da forma como o inconsciente se constitui e opera faz que muitas das elaborações freudianas permaneçam vivas e pulsantes. 

A teorização do inconsciente, como dada por Freud, é considerada uma das três feridas narcísicas da humanidade. O que são feridas narcísicas? São descobertas que enfraquecem a lógica de que os seres humanos são o centro de tudo e de que tudo foi criado em prol deles. 

A primeira deu-se no campo cosmológico com a descoberta do heliocentrismo. A Terra não é o centro do Universo e o sol não gira em torno dela como pensavam. É apenas mais um dos astros "perdidos" no espaço e gira em torno do sol.

A segunda adveio da teoria darwiniana no sentido de que o ser humano não surgiu de uma especial criação divina, mas de um processo evolucionário que se deu ao longo do tempo, por meio da seleção natural. Darwin, ao escrever A origem das espécies expõe a natureza biológica e animal dos humanos, os quais descendem de ancestrais comuns.

Por fim, a ferida psicológica da humanidade, em que Freud nos diz: "Vocês não são tão senhores de si como pensam." Trata-se do inconsciente, instância psíquica que existe a despeito da dita razão, e que tem o poder de nos conduzir ou arrastar. Que nos subjuga!

Somando-se a essas feridas de âmbito coletivo, temos a grande ferida individual, talvez a mais sangrenta de todas, e por que não a incurável? Também não somos o centro das vidas de nossos pais, quiçá de nossa mãe. Eles têm interesses além de nós e sobrevivem muito bem sem nós. E daí a grande decepção do personagem shakesperiano Hamlet, ao perceber que sua "santa" mãe, antes mesmo do enterro do falecido marido, entrega-se ao irmão deste. A mãe tem um sexo que pulsa e essa pulsação da sexualidade da mulher não tem por objeto apenas os filhos. O que é o complexo de Édipo senão a descoberta da existência de um terceiro que "rouba" o desejo da mãe e que dorme no leito com ela enquanto ficamos acordados sozinhos no quarto escuro?

São nossas feridas psíquicas que nos levam ao divã, a fim de que uma outra pessoa, o analista, sirva de testemunha de nossas histórias, nos veja, nos escute atentamente, e nos auxilie na elaboração de sintomas, traumas e dores para que consigamos viver melhor.

O processo analítico é metaforicamente comparado ao de esculpir. Imaginemos que somos um mármore em estado bruto e que precisamos retirar os excessos, moldar e polir a pedra a fim de criarmos algo, digamos um objeto estético a ser visto, sentido, admirado. Fazer de nós mesmos uma obra de arte a ser esculpida durante a vida. A essência da pedra permanecerá, mas sob novas formas, retiradas as camadas que nos sufocam e nos impedem a plenitude do ser e do viver.

O psicanalista está diante de nós como testemunha que nos escuta sem julgamentos e permite que escutemos a nós mesmos. As pessoas precisam tanto falar de si mesmas. Na verdade, o mais importante em uma análise é que a gente se escuta diante de outro que se cala e nos deixa falar sem interrupções. O psicanalista pode iniciar com o analisando utilizando-se das palavras da canção:

"Me conta a sua história, fala dos seus amores e dos desenganos. Conta para mim seus desejos e o sonho escondido que não se realizou. Me fala das promessas que tanto fizeram. Fala da sua tristeza e do quanto chorou e ninguém percebeu. Me fala dos seus erros. Mas venha sem receios, venha sem remorsos. Eu não a quero pura, não a quero santa, eu quero só você."

O psicanalista quer a verdade. A verdade do sujeito que está ali diante dele, sem a qual a análise não se torna possível. A verdade que o próprio sujeito não quer aceitar, não consegue elaborar nem viver com ela. Mas se trata da sua verdade, do seu desejo e nada no mundo pode ser mais forte do que isso. A força de uma singularidade que clama por ser expressada e vivida. É mais forte que nós e não aceita repressões, sob pena do surgimento de sintomas, transtornos, doenças e muito sofrimento psíquico.

O que há de mais verdadeiro em nós é o nosso desejo. Mas sempre há uma avalanche de coisas contra ele em todos os lugares. "Desejo é coisa de gente". É o que temos de mais elementar e constitutivo. É preciso escutá-lo, não necessariamente para satisfazê-lo. Podemos simplesmente conhecê-lo, a fim de elaborá-lo e decidirmos se vamos afastá-lo, descartá-lo ou ter a coragem de bancá-lo. Mas precisamos entrar em contato com ele, porque precisamos entrar em contato com a nossa verdade mais pura.

Este é o convite que a Psicanálise nos faz. Você TOPA se topar com o seu desejo?








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