Em nome da mãe, de Erri de Luca.
"Toda mulher, ao saber que está grávida, leva à mão na garganta: ela sabe que dará à luz um ser que seguirá forçosamente o caminho de Cristo, caindo na sua via muitas vezes sob o peso da cruz. Não há como escapar."
Nesse trecho, Clarice Lispector define o sentimento de uma mulher ao receber a notícia de uma gravidez. Ela, que teve dois filhos, provavelmente levara a mão à garganta ao saber que seria mãe. E, assim também, deve ter procedido Maria ao receber o anúncio do anjo Gabriel.
No livro "Em nome da mãe", o escritor dá voz a Maria, mãe de Jesus, permitindo que ela conte a sua história no período compreendido entre o anúncio da concepção de Cristo e o momento em que ela dá a luz ao mundo.
Na Bíblia, esses episódios constam do livro de Lucas. Deus envia o anjo Gabriel a Nazaré para revelar à Maria que ela dará a luz um filho cujo nome será Jesus. Maria era virgem e prometida em casamento a um homem chamado José.
O anjo disse: "Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo". Maria se perturbou, pois não entendia bem a respeito do que o anjo lhe falava. Não sabia o que aquilo significava. O anjo continuou: "Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus." Assim, revelou à virgem os planos de Deus para ela, que perguntou: "Como acontecerá isso, pois não conheço homem?" Em resposta, o anjo: "O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra; é por isso que o menino que vai nascer será chamado Filho de Deus."
Maria não contesta a vontade de Deus e assente: "Eis aqui a serva do Senhor. Aconteça comigo segundo a tua palavra!" E assim, o verbo se fez carne.
Ao visitar a prima Isabel, que estava grávida de João Batista, Maria reconhece a grandeza de Deus com esse cântico:
"Minha alma engradece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, pois atentou para a humildade da sua serva. De agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor; santo é o seu nome. A sua misericórdia estende-se aos que o temem, de geração em geração. Ele realizou poderosos feitos com seu braço; dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração. Derrubou os governantes dos seus tronos, mas exaltou os humildes. Encheu de coisas boas os famintos, mas despediu de mãos vazias os ricos. Ajudou a seu servo Israel, lembrando-se da sua misericórdia para com Abraão e seus descendentes para sempre, como dissera aos nossos antepassados."
O anjo Gabriel disse a Maria que Deus havia achado nela graça. Essa palavra tem origem latina gratia, que deriva de gratus e que "em sua primeira acepção designa a qualidade ou conjunto de qualidades que fazem agradável a pessoa que as têm."
Num trecho do livro em que Maria e José dialogam, este a pergunta:
"Miriam, sabes o que é a graça?"
"Não exatamente", ela responde.
"Não é um modo de andar atraente, não é o porte altivo de certas mulheres daqui, que gostam de se exibir. É a força sobre-humana de enfrentar o mundo sozinha, sem esforço, desafiá-lo para um duelo completo sem nem sequer se despentear. Não é algo feminino, é dote de profetas. É um dom, e tu o recebeste. Quem o possui está libertado de qualquer temor. Eu o vi em ti na noite do encontro, e desde então o tens sobre ti. És cheia de graça, ao teu redor há uma barreira de graça, uma fortaleza. Tu a espalhas Miriam: até sobre mim."
Não deve ter sido nada fácil para José enfrentar tudo e todos tendo ao seu lado uma mulher grávida de um filho cujo pai não era ele. Maria poderia ser acusada de adúltera caso ele dissesse a verdade. Quem acreditaria que ela estivesse grávida do Espírito Santo? Naquele tempo, a pena para o crime de adultério era o apedrejamento.
Erri de Luca supõe que José se deixaria apedrejar no lugar de Maria, dizendo sim para ela e não para o mundo. E assim, os dois se mantiveram firmes na missão a eles concedida. Apesar dos olhares acusadores de outras mulheres, conforme sugere o autor, Maria estufava a barriga, pois quem estava no seu ventre era o Salvador.
"Mas ela estava feliz. Estar grávida, crescer feito a lua, contar as semanas como para o transvasamento do vinho, não ter as regras, tudo era uma pureza que a inebriava de alegria."
Era preciso que não só Maria, mas também José, tivessem a coragem necessária para enfrentar as leis e os costumes. Ainda que todos a julgassem, ele estaria ao seu lado por conhecer a sua graça.
"O fato é que tu és a mais especial exceção, e eles não têm coração suficiente para entendê-la e julgá-la. Esse é um assunto que precisa de amor à primeira vista, ao passo que eles se atrapalham com os códigos, com os costumes. Para eles és pedra de tropeço, para mim és a pedra angular com que se inicia uma casa."
Quando Maria questiona José sobre de onde ele tira forças para estar só contra todos, ouve como resposta: "De ti".
Maria e José se veem obrigados a deslocarem-se de Nazaré para Belém, pois naqueles dias o imperador César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo o império romano. Todos deveriam se dirigir para a sua cidade natal a fim de alistar-se.
Erri insinua que Ana, mãe de Maria, ficou apavorada com os perigos que poderiam surgir no deslocamento de uma cidade para outra, uma vez que temia pela vida da filha e da criança, bem como com a possibilidade de não se encontrar parteira para prestar-lhe auxílio na hora do nascimento. Apesar da companhia de José, Ana alertara a filha quanto à natureza masculina:
"Os homens são bons para exercer certos ofícios e para tagarelar, mas ficam perdidos diante do nascimento e da morte. Não entendem dessas coisas. Precisa-se de mulheres no momento do desabrochar e na hora do desfecho."
Maria responde à mãe: "Bastarei a mim mesma, minha mãe."
Na verdade, Maria se sustentava no Deus que havia concedido a ela a missão de revelar a luz ao mundo e por isso não temia mal algum, a ponto de dizer: "Saberei fazer de olhos fechados o que é preciso."
A viagem de Nazaré a Belém era longa, mas eles se arranjaram e seguiram no lombo de uma jumenta. No caminho, o casal se depara com um cego e José presta-lhe ajuda. O cego os abençoa com as seguintes palavras: "Tu que ajudas alguém que é visto pelos outros mas não vê, que tu possas receber a ajuda daquele que tudo vê e não é visto por ninguém."
Maria estava pronta para revelar Cristo ao mundo. "Eis-me pronta, argila com alma de ferro: as pedras que queriam me atirar se fragmentaram." O parto ocorreu naturalmente, sem complicações e Maria usou de toda a sua força e no silêncio do seu coração guardou toda dor.
Assim nasceu Jesus, numa noite escura e deserta. O menino foi envolto em panos e colocado em uma manjedoura. Ele não chora e Maria se preocupa: "Como é que não choraste? Como é que não choras? Serás talvez mudo? Seria melhor, estarias a salvo; se dás muita importância às palavras, elas podem te forçar ao exílio, as prisões ou pior."
Mais tarde, ele terá o dom da palavra que dita com autoridade será o motivo de sua glória e morte. A mãe chega a desejar a mudez do filho por sentir o que o aguarda e desejar protegê-lo.
Maria preferiria que seu filho fosse tal qual os comuns para que ele não fosse crucificado e dirigiu seu pensamento a Deus com o instinto de preservação maternal: "Faz apenas com que este menino não seja ninguém na tua história, faz com que ele seja um homem simples, contente de sê-lo, e que se enfureça só com as moscas."
Maria foi invadida por um vazio na alma e no ventre. Seu filho jamais poderia receber novamente a proteção que ela como mãe lhe dera dentro de sua barriga. Agora ele tinha nascido para as coisas e os desafios do mundo. Um filho quando nasce esvazia o ventre da mãe para enchê-la de alegrias e dores. E todas as dores de Maria foram sentidas em silêncio, pois ela guardava todos os sentimentos em seu coração por ser uma serva humilde que aceitava a vontade de seu Deus.
Nesse trecho, Clarice Lispector define o sentimento de uma mulher ao receber a notícia de uma gravidez. Ela, que teve dois filhos, provavelmente levara a mão à garganta ao saber que seria mãe. E, assim também, deve ter procedido Maria ao receber o anúncio do anjo Gabriel.
No livro "Em nome da mãe", o escritor dá voz a Maria, mãe de Jesus, permitindo que ela conte a sua história no período compreendido entre o anúncio da concepção de Cristo e o momento em que ela dá a luz ao mundo.
Na Bíblia, esses episódios constam do livro de Lucas. Deus envia o anjo Gabriel a Nazaré para revelar à Maria que ela dará a luz um filho cujo nome será Jesus. Maria era virgem e prometida em casamento a um homem chamado José.
O anjo disse: "Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo". Maria se perturbou, pois não entendia bem a respeito do que o anjo lhe falava. Não sabia o que aquilo significava. O anjo continuou: "Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus." Assim, revelou à virgem os planos de Deus para ela, que perguntou: "Como acontecerá isso, pois não conheço homem?" Em resposta, o anjo: "O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra; é por isso que o menino que vai nascer será chamado Filho de Deus."
Maria não contesta a vontade de Deus e assente: "Eis aqui a serva do Senhor. Aconteça comigo segundo a tua palavra!" E assim, o verbo se fez carne.
Ao visitar a prima Isabel, que estava grávida de João Batista, Maria reconhece a grandeza de Deus com esse cântico:
"Minha alma engradece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, pois atentou para a humildade da sua serva. De agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor; santo é o seu nome. A sua misericórdia estende-se aos que o temem, de geração em geração. Ele realizou poderosos feitos com seu braço; dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração. Derrubou os governantes dos seus tronos, mas exaltou os humildes. Encheu de coisas boas os famintos, mas despediu de mãos vazias os ricos. Ajudou a seu servo Israel, lembrando-se da sua misericórdia para com Abraão e seus descendentes para sempre, como dissera aos nossos antepassados."
O anjo Gabriel disse a Maria que Deus havia achado nela graça. Essa palavra tem origem latina gratia, que deriva de gratus e que "em sua primeira acepção designa a qualidade ou conjunto de qualidades que fazem agradável a pessoa que as têm."
Num trecho do livro em que Maria e José dialogam, este a pergunta:
"Miriam, sabes o que é a graça?"
"Não exatamente", ela responde.
"Não é um modo de andar atraente, não é o porte altivo de certas mulheres daqui, que gostam de se exibir. É a força sobre-humana de enfrentar o mundo sozinha, sem esforço, desafiá-lo para um duelo completo sem nem sequer se despentear. Não é algo feminino, é dote de profetas. É um dom, e tu o recebeste. Quem o possui está libertado de qualquer temor. Eu o vi em ti na noite do encontro, e desde então o tens sobre ti. És cheia de graça, ao teu redor há uma barreira de graça, uma fortaleza. Tu a espalhas Miriam: até sobre mim."
Não deve ter sido nada fácil para José enfrentar tudo e todos tendo ao seu lado uma mulher grávida de um filho cujo pai não era ele. Maria poderia ser acusada de adúltera caso ele dissesse a verdade. Quem acreditaria que ela estivesse grávida do Espírito Santo? Naquele tempo, a pena para o crime de adultério era o apedrejamento.
Erri de Luca supõe que José se deixaria apedrejar no lugar de Maria, dizendo sim para ela e não para o mundo. E assim, os dois se mantiveram firmes na missão a eles concedida. Apesar dos olhares acusadores de outras mulheres, conforme sugere o autor, Maria estufava a barriga, pois quem estava no seu ventre era o Salvador.
"Mas ela estava feliz. Estar grávida, crescer feito a lua, contar as semanas como para o transvasamento do vinho, não ter as regras, tudo era uma pureza que a inebriava de alegria."
Era preciso que não só Maria, mas também José, tivessem a coragem necessária para enfrentar as leis e os costumes. Ainda que todos a julgassem, ele estaria ao seu lado por conhecer a sua graça.
"O fato é que tu és a mais especial exceção, e eles não têm coração suficiente para entendê-la e julgá-la. Esse é um assunto que precisa de amor à primeira vista, ao passo que eles se atrapalham com os códigos, com os costumes. Para eles és pedra de tropeço, para mim és a pedra angular com que se inicia uma casa."
Quando Maria questiona José sobre de onde ele tira forças para estar só contra todos, ouve como resposta: "De ti".
Maria e José se veem obrigados a deslocarem-se de Nazaré para Belém, pois naqueles dias o imperador César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo o império romano. Todos deveriam se dirigir para a sua cidade natal a fim de alistar-se.
Erri insinua que Ana, mãe de Maria, ficou apavorada com os perigos que poderiam surgir no deslocamento de uma cidade para outra, uma vez que temia pela vida da filha e da criança, bem como com a possibilidade de não se encontrar parteira para prestar-lhe auxílio na hora do nascimento. Apesar da companhia de José, Ana alertara a filha quanto à natureza masculina:
"Os homens são bons para exercer certos ofícios e para tagarelar, mas ficam perdidos diante do nascimento e da morte. Não entendem dessas coisas. Precisa-se de mulheres no momento do desabrochar e na hora do desfecho."
Maria responde à mãe: "Bastarei a mim mesma, minha mãe."
Na verdade, Maria se sustentava no Deus que havia concedido a ela a missão de revelar a luz ao mundo e por isso não temia mal algum, a ponto de dizer: "Saberei fazer de olhos fechados o que é preciso."
A viagem de Nazaré a Belém era longa, mas eles se arranjaram e seguiram no lombo de uma jumenta. No caminho, o casal se depara com um cego e José presta-lhe ajuda. O cego os abençoa com as seguintes palavras: "Tu que ajudas alguém que é visto pelos outros mas não vê, que tu possas receber a ajuda daquele que tudo vê e não é visto por ninguém."
Maria estava pronta para revelar Cristo ao mundo. "Eis-me pronta, argila com alma de ferro: as pedras que queriam me atirar se fragmentaram." O parto ocorreu naturalmente, sem complicações e Maria usou de toda a sua força e no silêncio do seu coração guardou toda dor.
Assim nasceu Jesus, numa noite escura e deserta. O menino foi envolto em panos e colocado em uma manjedoura. Ele não chora e Maria se preocupa: "Como é que não choraste? Como é que não choras? Serás talvez mudo? Seria melhor, estarias a salvo; se dás muita importância às palavras, elas podem te forçar ao exílio, as prisões ou pior."
Mais tarde, ele terá o dom da palavra que dita com autoridade será o motivo de sua glória e morte. A mãe chega a desejar a mudez do filho por sentir o que o aguarda e desejar protegê-lo.
Maria preferiria que seu filho fosse tal qual os comuns para que ele não fosse crucificado e dirigiu seu pensamento a Deus com o instinto de preservação maternal: "Faz apenas com que este menino não seja ninguém na tua história, faz com que ele seja um homem simples, contente de sê-lo, e que se enfureça só com as moscas."
Maria foi invadida por um vazio na alma e no ventre. Seu filho jamais poderia receber novamente a proteção que ela como mãe lhe dera dentro de sua barriga. Agora ele tinha nascido para as coisas e os desafios do mundo. Um filho quando nasce esvazia o ventre da mãe para enchê-la de alegrias e dores. E todas as dores de Maria foram sentidas em silêncio, pois ela guardava todos os sentimentos em seu coração por ser uma serva humilde que aceitava a vontade de seu Deus.
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