Minhas Queridas, de Clarice Lispector

Trata-se de um livro do gênero epistolar com as cartas escritas por Clarice Lispector às irmãs, Elisa e Tânia, no período em que a escritora viveu fora do Brasil para acompanhar seu marido, diplomata, Maury Gurgel Valente.
Reli todas as cartas com a emoção de uma irmã, que assim como Clarice, ama os irmãos. "A coisa melhor da vida é ter irmãs. Não há quem as substitua", disse ela. E eu digo: ter irmãos é a coisa mais melhor do mundo. Isso mesmo. Mais melhor.
Nas primeiras cartas, Clarice encontrava-se ainda no Brasil, na cidade de Belém, ainda assim, escrevia às irmãs como quem já estivesse do outro lado do planeta. Em suas cartas, Clarice, querendo ou não, fazia literatura. Parece mesmo que sabia que elas ficariam para a posteridade. "Ler as cartas de Clarice é como saborear garrafas de champanhe espumante", escreveu Teresa Montero. Eu digo que ler as cartas de Clarice é como saborear taças de vinho seco, ainda que a embriaguez seja ocasionada mais pelas suas palavras que pelo álcool.
Leio-as sentindo todos os sentimentos de Clarice: saudade, angústia, tristeza, alegria, medo, insegurança, amor, ciúmes, desespero. "É preciso ter coragem para ter vida nova". Clarice teve coragem quando decidiu deixar o Brasil e se afastar fisicamente das irmãs. Mas, seu coração, nunca esteve fora daqui. Um único desejo a seguiu por todo esse tempo: o retorno ao Brasil.
Então, ela escrevia. "Escrevo porque encontro nisso um prazer que não sei traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando".
E como sua alma chorou quando esteve longe das irmãs. Pareceu-me que o período mais difícil para ela foi aquele em que esteve em Berna, na Suíça. Ali, Clarice viveu o ápice de sua solidão, ao ponto de dizer "estou considerando Berna como uma prova". E ela repete esse pensamento em outras cartas escritas de lá: "Berna vai ser a dura prova que me mostrará se eu sou capaz de ser gente ou não".
Apesar de morar em alguns países, Clarice não se entusiasmara com eles. Eram as pessoas que a interessavam. De nada adiantaria ver coisas bonitas se não podia compartilhá-las com os que amava. "Só tenho na verdade interesse e esperança em certas pessoas, em conhecer certas pessoas. O mundo me parece uma coisa vasta demais e sem síntese possível".
Ela também escreveu: "o mundo todo me parece ligeiramente chato".
As descrições de Berna eram sempre em tom melancólico. Ela que, em outra oportunidade declarara que detestava o domingo por ser oco, chegou a dizer que em Berna era diariamente domingo. "Berna é um silêncio terrível: as pessoas também são silenciosas e riem pouco. Eu é que tenho tido acessos de riso."
"Vivo com parte do corpo e da cabeça voltada para o Brasil e às vezes todo o corpo e toda a cabeça".
Ela não tinha qualquer interesse pelo mundo como também não tenho. Sinto-me como se fosse um ser extraterrestre quando digo ao mundo que não gosto de viajar, de sair da simplicidade do meu lar. Logo querem arrumar uma justificativa para o meu não-gosto: "não é porque você tem medo de avião?"Tenho mesmo esse medo. Algumas vezes até o enfrentei e quando chegava aos destinos, pensava: "Ah! é só isso?".
É que como Clarice: "Eu infelizmente sou um espírito cansado e "blasé"; pouca coisa me entusiasma, eu bebi demais na literatura."
Todos querem conhecer o mundo todo porque falar do mundo todo impressiona. E eu não quero impressionar ninguém. Sou interiorana que, por ter vivido até a adolescência num espaço geograficamente pequeno, como é minha cidade de origem, tive que desenvolver um mundo vasto dentro de mim e o tamanho desse meu mundo interior ultrapassou o tamanho do Universo. Aí eu não tenho interesse em conhecer o que está fora e distante demais. É que já tenho muito ao meu alcance sem que eu precise pôr os pés para fora de casa.
A impressão que tenho é que hoje as pessoas viajam tanto que voltam mais tontas do que foram. É porque elas ainda não encontraram aquele mundo ao alcance das mãos de que falo.
Esse desinteresse pode ser a pior espécie de esnobismo que alguém pode ter: não ter prazer "nas coisas do mundo". Se o é, faz parte da minha natureza e não há de ser pecado.
Numa das cartas, ela escreveu: "O mundo todo é ligeiramente chato, parece. O que importa na vida é estar junto de quem se gosta. Isso é a maior verdade do mundo. E se existe um lugar especialmente simpático é o Brasil".
Clarice não poupava em palavras delicadas e amorosas para se dirigir às irmãs: queridinha, filhinha, Elisinha, Leinha, minha florzinha. Escrevia e cobrava retornos incessantemente. Queria saber detalhes da vida das irmãs, como estavam de saúde, de dinheiro, de trabalho. Dava-lhes os melhores conselhos e as mais cuidadosas recomendações. "Seja feliz, cuide-se, poupe-se, ame-se, faça isso, faça aquilo", enquanto ela mesma é que precisava de cuidados e de amor.
Quando esteve em Nápoles, escreveu: "A vida é igual em toda a parte e o que é necessário é a gente ser a gente".
"Eu sou uma pobre exilada. Você não imagina como longe do Brasil se tem saudade dele. Sou capaz de escrever um novo Brasil, país do futuro".
Disse no início que Clarice tinha duas irmãs. Eu não. Eu tenho é dois irmãos bonitos, grandes e fortes. Sou a mais velha de três filhos de minha mãe. Nem bonita, nem feia, nem grande, nem forte. O do meio é de gênio difícil que nem o meu. Quando vou falar com ele o chamo Osmar e com firmeza. Sempre tive a sensação que com ele eu teria que ser dura. Acho que em muitas circunstâncias pesei demais a mão. Foi por amor. A desculpa para os meus exageros. Às vezes sai um "Ju" de Júnior porque ele tem o nome de nosso pai. Somos parecidos em natureza e em orgulho. A origem comum, os problemas comuns, a vivência simultânea de nossas infâncias, o sangue comum de nossos ascendentes, o amor incondicional e comum de nossos avós maternos nos fizeram mais semelhantes. Ele se deixa acarinhar muito pouco. Eu, quase nada. Eu o amo como amo a tão poucos. E não é que o danado me ama também? Esses dias ele aprontou uma comigo que até agora estou tonta de tanto amor. Eu que já sou madrinha do primeiro filho dele fui surpreendida com o convite para ser madrinha do segundo. E não é que no fundo eu já sabia? Às vezes finjo que não tenho só para receber mais e mais.
Ainda tem essa parte boa de ter irmãos. Você ainda pode ganhar sobrinhos e afilhados. Ser tia e madrinha ao mesmo tempo e dar a eles o amor que você já tem ao irmão somado ao amor que você terá aos filhos dele. Mais que com os irmãos, é com os sobrinhos que nos revelamos. Eu me revelo.
O irmão caçula é um anjinho de olhos bem azuis, de um azul mais intenso que o céu. Branquinho e de uma pureza que de tão pura foi toda para ele e me faltou. As bochechas rosinhas. Tão lindinho. Peguei no colo, troquei as fraldas, dei-lhe banho, mamadeira, botei pra dormir, amei, briguei (porque brigar é uma forma que tenho de amar também). Vi crescer. A vozinha é mansa. Boa de ouvir. Hoje é ele quem me dá colo, me chama Mamá. Tão acolhedor ele é. Tão meu irmão como o outro. Dizem que quando ganhamos um irmão por parte só de pai ou só de mãe ele é nosso meio-irmão. Que mentira. Pois é nele que eu somo e multiplico. Nele eu viro dez para defendê-lo. E ai de quem mexer com ele. Cresço na hora e viro leoa.
Nele me apequeno também. Porque ele é sutil, sutil, sutil. Tudo que não tenho de bom e belo vejo nele.
E me deu uma saudade agora do meu bebê, do meu nenê. É assim que o chamo. E mesmo quando fico brava com ele por achar que não está se cuidando como deveria continuo querendo dar-lhe colo. Por ele, eu sou capaz de perdoar até crimes. Nele, Deus se manifestou com mais clareza. Foi meu bebê quem me pediu que eu escrevesse algo em homenagem ao aniversário de Clarice, que foi no dia 10 de dezembro. Estou aqui escrevendo é em obediência a ele. Ele nem sabe que manda em mim e que  não só gosto de suas ordens como as cumpro.
Não largo nem Brasília, nem o Brasil. Não saio de perto dos meus irmãos nem que me ofereçam ouro. Eles é que são minhas riquezas. Eles até podem querer ficar longe de mim e isso não está sob meu controle, mas eu não arredo o pé de perto deles.
Mas, Clarice casou e foi embora com o marido diplomata. Pagou um alto preço em ficar longe das irmãs que tanto amava.
Quem sabe a distância acabou aproximando-as? Quando estamos perto nem sempre manifestamos os sentimentos. Falar escrevendo é mais fácil que falar falando. "É que quando estamos juntas não escrevemos cartas e parece que é escrevendo que se pode dizer certas coisas".
Carta é um excelente meio para ser intenso e verdadeiro. É pena que elas são cada vez mais escassas. Eu mesma nunca escrevi carta aos meus irmãos. Dentre as coisas bonitas que há no mundo, Clarice disse a irmã: "Ser irmão é uma delas, gostar de irmã muissima delissima".
Clarice não conseguiu se adaptar longe dos seus: "minha vida é um esforço diário de adaptação nesses lugares áridos, áridos porque vocês não estão comigo".
Essas cartas me fizeram olhar a vida com outros olhos. Cada frase me abria a consciência para o que é verdadeiro, importante e fundamental. Ter irmãos é uma das coisas fundamentais da vida. Amá-los é o melhor dos sentimentos.
Para os meus irmãos quero o que há de mais belo na vida. Quero que eles sejam alegres, felizes e que essa alegria seja duradoura. Quero que eles sejam melhores que eu. Que eles me ultrapassem em tudo. A alegria deles é a minha alegria. A tristeza deles é a minha tristeza. A vida deles é um presente de Deus para mim. E os filhos deles são meus filhos. Meus irmãos são os lírios do campo. Eu quero regá-los sempre com muito amor para que eles cresçam, cresçam e floresçam. À medida que eles crescem, eu quero diminuir mais e mais para caber dentro deles. É perto deles que eu quero viver e morrer. Porque para mim, assim como para Clarice, "não existem lugares, existem pessoas". Mas, diferente de Clarice, não estou disposta a me lançar no mundo, nem mesmo para seguir diplomata, pois quero estar sempre onde estão os meus dois coraçõezinhos, quero dizer, os meus dois irmãozinhos.





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