De como um texto do Olavo de Carvalho saciou a minha fome.
Penso que a fome é uma das coisas mais urgentes que existe e a sua chegada nos impede de realizar tudo o mais. Refiro-me à fome de alimento mesmo. Aquela que surge e faz o estômago gritar de dor e desespero. Aquela que, antes de saciada, não nos permite contemplar uma paisagem ou uma obra de arte, ler um livro ou mesmo sermos educados e bem humorados.
Antes de começar esse texto, por exemplo, havia concebido, enquanto a barriga estava cheia, a ideia que nele expressaria. Ocorre que antes de exteriorizá-la em palavras, veio a fome e eu tive que suspender o ato de escrever para alimentar-me. Nesse ínterim, o pensamento ficou vago e fugidio e ao saciar o desejo de comida, eis que a ideia foi toda reavivada. Conquanto, só escrevo neste momento porque estou bem alimentada.
Assim o é sempre. A fome me paralisa o corpo e o raciocínio. E por isso considero que saciá-la constitui uma das mais prementes urgências.
Foi pensando nisso que prolatei a mim mesma uma sentença de não recusar em hipótese alguma, salvo falta de dinheiro, um prato de comida a quem me pedir. Mas isso ainda é pouco. É necessário não somente saciar aos que nos pedem, mas também oferecer àqueles que nos apresentam desfigurados pela carência de alimento e que nada solicitam por medo, vergonha ou sentimentos alheios ao nosso conhecimento.
Não sei se alguém que lê esse texto tem a oportunidade de vaguear pelas ruas da cidade à hora do almoço. Eu vagueio por um local apelidado Rua dos Restaurantes e é um lugar promissor para quem quer investir na ajuda aos necessitados. Sei que há lugares melhores, mas é que esse está ao meu alcance diariamente e só ouso falar sobre coisas que vivencio. Pois bem, é nesse lugar que exerço a caridade que considerava mais importante que todas as outras: dar alimento a quem dele precisa.
Recuso-me a dar dinheiro. Vai que a pessoa compre cigarro, álcool ou drogas com os centavos que lhe dei. Sou muito boazinha para permitir que alguém se prejudique com algo doado por mim. Dinheiro não dou de jeito nenhum. Dou comida, porque, além dela ser extremamente vital, mostra o quanto sou nobre ao me preocupar em estancar uma das mais dolorosas facetas da pobreza que é a fome.
Ocorre que esse meu pensamento restou balançado ao ler um texto em que Olavo de Carvalho nos chama a atenção para demonstrar que o cerne da questão ultrapassa o vazio do estômago. As pessoas que encontramos perambulando pelas ruas têm fome de pão, como têm de atenção, respeito, cuidado e do mínimo de dignidade.
Olavo diz: "No mais das vezes, o que falta não é comida, não é o dinheiro: é as pessoas compreenderem que a pobreza não é um estigma, não é uma desonra; é uma coisa que pode acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o reforço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente normal e, em suma, um membro da espécie humana."
É certo que ao sermos abordados nas ruas por quem nos pede alguma coisa não temos condições de iniciar uma sessão de terapia para saber e tentar solucionar todos os problemas vivenciados por aquela pessoa, nem devemos nos prestar a isso. Entretanto, a forma como respondemos aquele que nos interpela pode ajudá-lo a reerguer de seu atual estado de indignidade.
Olavo dá o exemplo do pai que ao deparar-se com um mendigo o tratava como "senhor", fazendo o filho compreender que "o homem em dificuldades necessita de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em situação normal".
"Quem nos pede ajuda vence a resistência de mostrar inferioridade e merece que sejamos o mais respeitoso, cuidadoso e escrupuloso possível".
Esse ensinamento me fez mudar de atitude em relação aos que têm fome. Já não peço à dona do restaurante que prepare uma marmita para entregá-los, antes os pergunto se querem entrar e sentar-se para almoçarem no próprio estabelecimento como todas as outras pessoas o fazem.
Eles se mostram espantados e nunca aceitam o convite. É como se quem lhes faz essa proposta não entende que são pessoas diferentes e por isso não devem transitar por lugares frequentados pelas pessoas normais.
A verdade é que somos distanciados pela condição econômica e social. O mal deles é a pobreza constante e persistente. No mais, é tudo igual. Acredito que eles próprios perderam a noção dessa verdade de tão estigmatizados e marginalizados por todos nós.
Não devemos esperar que somente o Estado e outros que não nós mesmos alcancem todas as pessoas necessitadas. Antes, façamos em palavras, gestos e ações aquilo que nos cabe e está sob nosso alcance diário.
Conheço um senhor que por vezes interrompe minha leitura do meio dia para oferecer uma revista que tem por finalidade lucrativa apoiar pessoas cujo passado de dependência química as afastaram do convívio social. É uma medida para reintegrá-las à sociedade e fazer com que vivam por seus próprios meios. Percebo que mais do que apresentar o produto e convencer-me a comprá-lo, o que ele quer é falar sobre sua vida e seu passado doloroso.
Ele me contou toda a infância de abusos, violência e rejeição paterna até chegar ao episódio de sua prisão. Parecia querer justificar a segunda história com a primeira. Percebendo que o caso seria bem longo, convidei-o a sentar e tomar um café comigo. Ele recusou a cortesia, mas não a caridade de ouvi-lo.
Escutei pacientemente o que ele tinha a dizer e perguntei ao final o porquê da prisão. Havia cometido uma série de homicídios, latrocínios, furtos e roubos, mas fez questão de dizer que estava se curando.
Às vezes compro a revista dele, outras escuto o que tem a dizer ou faço ambas.
Há outra coisa no texto do Olavo que me chamou muito a atenção e, se me permitem, quero voltar atrás a respeito daquela questão que disse sobre não dar dinheiro aos que me pedem, porque eles podem usá-lo para alimentar seus vícios.
Primeiro que é muita pretensão imaginar que as moedinhas que damos dê para alimentar qualquer espécie de vício. Segundo, temos que permitir que o outro tenha a liberdade de utilizar o seu dinheiro da maneira que lhe aprouver. Se demos, o objeto dado não mais nos pertence.
Sobre esse assunto: "Ainda há quem diga: "Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira esquina!" Pois que beba! Tão logo o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês precisam educar o pobre "para a cidadania" e começam por lhe negar o direito de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que, atormentado pela miséria, tem o direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro falido?"
O autor tem razão. Quem não conhece pessoas que bebem todos os dias ao final das tardes ou nos finais de semana sob a justificativa de que trabalham tanto e por isso precisam relaxar e se divertir?
Por que negamos ao miserável que também tenha sua quota de diversão? Ainda que para isso precise se embriagar? E se o que queremos realmente é ajudá-los, por que não dar o almoço e algo mais para que eles possam usufruir de uma sobremesa regada à rum?
O homem necessita do essencial, mas como diz Nelson Rodrigues, só é feliz no supérfluo. E antes de criticar essa frase reflita em torno de como você se sente muito mais feliz tomando uma cervejinha ou numa viagem a Paris do que todos os dias diante de um prato de arroz e feijão.
Vou dar dinheiro sim e sem quaisquer questionamentos a respeito de qual será o destino dele. Cada um é que sabe de si e de sua fome. Às vezes ela é de pão, de cigarro, de álcool, de sexo, de atenção, de amor... Somos infinitamente vorazes em nossas fomes, mas queremos limitar a dos outros ao básico, sob o pretexto de que estamos realmente preocupados com o destino deles. Vou pensar a partir de então como bem frisou Olavo: "Pois que beba!"
E por falar no dito cujo, uma pessoa, ao saber que estou lendo um livro escrito por ele, questionou-me se ele leu ou pratica o que escreveu. Como vou saber? Só posso falar por mim. Leio com calma, paciência, livre de preconceitos, concordando com algumas coisas, discordando de outras, sem entender algumas, duvidando e questionando como faço com qualquer livro e só tenho ganhos com isso.
Veja bem, caso Hitler, apesar de sua barbárie, tivesse redigido um livro reconhecido como capaz de promover a paz e o respeito entre as pessoas, eu continuaria rejeitando e abominando os seus atos, mas leria a obra de coração aberto e extrairia dela o que houvesse de melhor.
Espero ter sido bastante clara.
Por fim, preciso dizer que há algum tempo pensava em elaborar um texto sobre a fome de alimento e não sabia por onde começar. Ao ler o texto do Olavo, um gatilho disparou a minha fome de escrever e a consequente saciedade.
Por enquanto, estou satisfeita, mas ciente de que logo serei invadida por outros acontecimentos que abrirão o meu apetite. Haja generosidade para saciar minhas fomes. Haja caridade!
Antes de começar esse texto, por exemplo, havia concebido, enquanto a barriga estava cheia, a ideia que nele expressaria. Ocorre que antes de exteriorizá-la em palavras, veio a fome e eu tive que suspender o ato de escrever para alimentar-me. Nesse ínterim, o pensamento ficou vago e fugidio e ao saciar o desejo de comida, eis que a ideia foi toda reavivada. Conquanto, só escrevo neste momento porque estou bem alimentada.
Assim o é sempre. A fome me paralisa o corpo e o raciocínio. E por isso considero que saciá-la constitui uma das mais prementes urgências.
Foi pensando nisso que prolatei a mim mesma uma sentença de não recusar em hipótese alguma, salvo falta de dinheiro, um prato de comida a quem me pedir. Mas isso ainda é pouco. É necessário não somente saciar aos que nos pedem, mas também oferecer àqueles que nos apresentam desfigurados pela carência de alimento e que nada solicitam por medo, vergonha ou sentimentos alheios ao nosso conhecimento.
Não sei se alguém que lê esse texto tem a oportunidade de vaguear pelas ruas da cidade à hora do almoço. Eu vagueio por um local apelidado Rua dos Restaurantes e é um lugar promissor para quem quer investir na ajuda aos necessitados. Sei que há lugares melhores, mas é que esse está ao meu alcance diariamente e só ouso falar sobre coisas que vivencio. Pois bem, é nesse lugar que exerço a caridade que considerava mais importante que todas as outras: dar alimento a quem dele precisa.
Recuso-me a dar dinheiro. Vai que a pessoa compre cigarro, álcool ou drogas com os centavos que lhe dei. Sou muito boazinha para permitir que alguém se prejudique com algo doado por mim. Dinheiro não dou de jeito nenhum. Dou comida, porque, além dela ser extremamente vital, mostra o quanto sou nobre ao me preocupar em estancar uma das mais dolorosas facetas da pobreza que é a fome.
Ocorre que esse meu pensamento restou balançado ao ler um texto em que Olavo de Carvalho nos chama a atenção para demonstrar que o cerne da questão ultrapassa o vazio do estômago. As pessoas que encontramos perambulando pelas ruas têm fome de pão, como têm de atenção, respeito, cuidado e do mínimo de dignidade.
Olavo diz: "No mais das vezes, o que falta não é comida, não é o dinheiro: é as pessoas compreenderem que a pobreza não é um estigma, não é uma desonra; é uma coisa que pode acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o reforço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente normal e, em suma, um membro da espécie humana."
É certo que ao sermos abordados nas ruas por quem nos pede alguma coisa não temos condições de iniciar uma sessão de terapia para saber e tentar solucionar todos os problemas vivenciados por aquela pessoa, nem devemos nos prestar a isso. Entretanto, a forma como respondemos aquele que nos interpela pode ajudá-lo a reerguer de seu atual estado de indignidade.
Olavo dá o exemplo do pai que ao deparar-se com um mendigo o tratava como "senhor", fazendo o filho compreender que "o homem em dificuldades necessita de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em situação normal".
"Quem nos pede ajuda vence a resistência de mostrar inferioridade e merece que sejamos o mais respeitoso, cuidadoso e escrupuloso possível".
Esse ensinamento me fez mudar de atitude em relação aos que têm fome. Já não peço à dona do restaurante que prepare uma marmita para entregá-los, antes os pergunto se querem entrar e sentar-se para almoçarem no próprio estabelecimento como todas as outras pessoas o fazem.
Eles se mostram espantados e nunca aceitam o convite. É como se quem lhes faz essa proposta não entende que são pessoas diferentes e por isso não devem transitar por lugares frequentados pelas pessoas normais.
A verdade é que somos distanciados pela condição econômica e social. O mal deles é a pobreza constante e persistente. No mais, é tudo igual. Acredito que eles próprios perderam a noção dessa verdade de tão estigmatizados e marginalizados por todos nós.
Não devemos esperar que somente o Estado e outros que não nós mesmos alcancem todas as pessoas necessitadas. Antes, façamos em palavras, gestos e ações aquilo que nos cabe e está sob nosso alcance diário.
Conheço um senhor que por vezes interrompe minha leitura do meio dia para oferecer uma revista que tem por finalidade lucrativa apoiar pessoas cujo passado de dependência química as afastaram do convívio social. É uma medida para reintegrá-las à sociedade e fazer com que vivam por seus próprios meios. Percebo que mais do que apresentar o produto e convencer-me a comprá-lo, o que ele quer é falar sobre sua vida e seu passado doloroso.
Ele me contou toda a infância de abusos, violência e rejeição paterna até chegar ao episódio de sua prisão. Parecia querer justificar a segunda história com a primeira. Percebendo que o caso seria bem longo, convidei-o a sentar e tomar um café comigo. Ele recusou a cortesia, mas não a caridade de ouvi-lo.
Escutei pacientemente o que ele tinha a dizer e perguntei ao final o porquê da prisão. Havia cometido uma série de homicídios, latrocínios, furtos e roubos, mas fez questão de dizer que estava se curando.
Às vezes compro a revista dele, outras escuto o que tem a dizer ou faço ambas.
Há outra coisa no texto do Olavo que me chamou muito a atenção e, se me permitem, quero voltar atrás a respeito daquela questão que disse sobre não dar dinheiro aos que me pedem, porque eles podem usá-lo para alimentar seus vícios.
Primeiro que é muita pretensão imaginar que as moedinhas que damos dê para alimentar qualquer espécie de vício. Segundo, temos que permitir que o outro tenha a liberdade de utilizar o seu dinheiro da maneira que lhe aprouver. Se demos, o objeto dado não mais nos pertence.
Sobre esse assunto: "Ainda há quem diga: "Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira esquina!" Pois que beba! Tão logo o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês precisam educar o pobre "para a cidadania" e começam por lhe negar o direito de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que, atormentado pela miséria, tem o direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro falido?"
O autor tem razão. Quem não conhece pessoas que bebem todos os dias ao final das tardes ou nos finais de semana sob a justificativa de que trabalham tanto e por isso precisam relaxar e se divertir?
Por que negamos ao miserável que também tenha sua quota de diversão? Ainda que para isso precise se embriagar? E se o que queremos realmente é ajudá-los, por que não dar o almoço e algo mais para que eles possam usufruir de uma sobremesa regada à rum?
O homem necessita do essencial, mas como diz Nelson Rodrigues, só é feliz no supérfluo. E antes de criticar essa frase reflita em torno de como você se sente muito mais feliz tomando uma cervejinha ou numa viagem a Paris do que todos os dias diante de um prato de arroz e feijão.
Vou dar dinheiro sim e sem quaisquer questionamentos a respeito de qual será o destino dele. Cada um é que sabe de si e de sua fome. Às vezes ela é de pão, de cigarro, de álcool, de sexo, de atenção, de amor... Somos infinitamente vorazes em nossas fomes, mas queremos limitar a dos outros ao básico, sob o pretexto de que estamos realmente preocupados com o destino deles. Vou pensar a partir de então como bem frisou Olavo: "Pois que beba!"
E por falar no dito cujo, uma pessoa, ao saber que estou lendo um livro escrito por ele, questionou-me se ele leu ou pratica o que escreveu. Como vou saber? Só posso falar por mim. Leio com calma, paciência, livre de preconceitos, concordando com algumas coisas, discordando de outras, sem entender algumas, duvidando e questionando como faço com qualquer livro e só tenho ganhos com isso.
Veja bem, caso Hitler, apesar de sua barbárie, tivesse redigido um livro reconhecido como capaz de promover a paz e o respeito entre as pessoas, eu continuaria rejeitando e abominando os seus atos, mas leria a obra de coração aberto e extrairia dela o que houvesse de melhor.
Espero ter sido bastante clara.
Por fim, preciso dizer que há algum tempo pensava em elaborar um texto sobre a fome de alimento e não sabia por onde começar. Ao ler o texto do Olavo, um gatilho disparou a minha fome de escrever e a consequente saciedade.
Por enquanto, estou satisfeita, mas ciente de que logo serei invadida por outros acontecimentos que abrirão o meu apetite. Haja generosidade para saciar minhas fomes. Haja caridade!
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