Uma certa história de amor, de Milena Agus.

Minha avó me contou que conheceu esse homem num lugar bastante frequentado por ela, onde sentava-se para ler os livros de que tanto gostava. Estava lá como de costume e ele apareceu, pediu licença e disse-lhe:

"Desculpe incomodá-la. Mas posso saber que livro é esse que prende tanto a sua atenção? Não me leve a mal, também sou um leitor e sempre que vejo alguém com um livro nas mãos tenho imensa curiosidade de saber do que se trata. Não sei bem explicar porquê. Deve ser curiosidade de leitor."

Ela odiava quando alguém interrompia a sua leitura e o respondeu de forma um pouco áspera, ainda que educada, informando-lhe o que queria saber sem deixar espaço para qualquer possibilidade de prolongar aquela conversa.

Estava lendo "Alice no País das Maravilhas". Como é um livro que agrada a meninada, ele aproveitou para tentar incluir na conversa a sobrinha que o acompanhava imaginando que minha avó, comovida por estar diante de uma criança, desse abertura para alongar uma espécie de relação que sentiu vontade de estabelecer com ela. Uma relação para falar sobre livros, que fosse, mas minha avó não deu qualquer liberdade e eles foram embora para a alegria dela que queria continuar acompanhada apenas de seu livro.

Tempos depois ela voltou a se encontrar com aquele  homem, pois ambos eram exímios frequentadores de livrarias e não faltavam oportunidades para isso acontecer. Ele se apresentou a ela e perguntou se lembrava dele. Sim, ela lembrava. Dessa vez estava sozinho e a convidou para tomar um café. Ele soubera que ela escrevia e disse querer saber mais sobre o que escrevia.

Minha avó era tão vaidosa que, ao saber que agora ele queria conversar sobre ela mesma e não sobre algum livro que estivesse lendo, aceitou o convite e dali em diante os dois se tornaram grandes amigos. O que ela mais gostava era falar sobre si mesma. E ele não só ouvia tudo com atenção e interesse, como alimentava seus pensamentos e devaneios. Era a companhia de que ela mais gostava. Ele próprio lhe dissera: "Sou a melhor companhia que você pode ter". Ele também era muito vaidoso.

Um dia minha avó estava muito triste e foi para uma livraria gozar da companhia dos livros, folheá-los, cheirá-los, abraçá-los, lê-los, senti-los, acariciá-los. Todas as vezes em que a tristeza lhe acometia ela se refugiava dessa forma e assim conseguia alguma espécie de acalento. Mas, naquele dia a tristeza era muito profunda, os livros não bastavam para aplacar o seu desespero, então ela desejou do fundo da alma encontrar o seu amigo. Mas resolveu que não ia telefonar-lhe, pois ele devia estar na companhia dos livros dele e não gostaria de atrapalhar.

Mas ela desejou tão ardentemente que seu amigo apareceu em sua frente como por milagre.

Foi com alegria que minha avó gritou por seu nome, deu-lhe um abraço e disse o quanto precisava dele naquele momento. "Hoje está insustentável viver" - disse a ele. "Eu precisava muito te dizer que hoje está insuportável viver".

Minha avó sofria porque tinha olhos de raio-x, mas ninguém a entendia. Não compreendiam o seu ceticismo. Até o meu avô algumas vezes a chamava de louca pelas coisas que ela lia e escrevia. Ela contou isso a seu amigo e ao se despedirem, depois de ter recebido algum conforto, seu amigo a presenteou com um livro chamado "Uma certa história de amor", da escritora italiana Milena Agus.

Livro era o presente que minha avó mais gostava de receber. Tudo o mais ela possuía e dizia não precisar, mas nunca considerou demais ganhar muitos livros. O seu amigo sabia disso e era só o que sabia dar de presente para ela que não os recusava sob nenhum pretexto. Até quando fingia que não queria, era só o que ela queria. E por saber disso, mesmo quando mostrava ares desinteressados, ele lhe dava livros.

Com muita ânsia, minha avó leu "Uma certa história de amor". Seu amigo insistia em saber se ela havia chegado ao fim, tão ávido também ele estava. Quando havia lido metade da história, ela quis saber dele porquê havia lhe dado um livro tão obsceno, ao que ele sorriu e disse: "Você ainda nem chegou ao final".

Encontrei minha avó chorando e quis saber o que tinha acontecido. Ela acabara de terminar sua leitura. Fiquei muito curiosa para saber o que de tão emocionante ela havia lido, pois eu sou tão apaixonada pelos livros quanto a minha avó. Então ela disse:

"Sente-se minha filha, eu vou te contar".

O livro "Uma história de amor" se passa na Itália. É uma narrativa em que uma moça conta a história que se passou com a sua avó paterna. Esta senhora, quando menina e durante toda a sua vida fora acusada por todos como sendo uma doida varrida.

Ao chegar à idade do namoro apareceu-lhe alguns pretendentes, pois ela era muito bonita, mas todos iam embora sem dar-lhe notícias e ela sempre ficava esperando e esperando e eles nunca voltavam.

No pequeno lugarejo em que viviam correu o boato de que ela costumava escrever poemas de amor ardentes e imorais para os homens e quando sua mãe ficou sabendo disso deu-lhe uma boa surra, pois a filha expunha não só ela mesma como toda a família.

Até que um homem com seus mais de quarenta anos chegou à aldeia fugido da guerra e como estava disposto a se casar com ela, já que tinha perdido tudo, inclusive família, os pais a obrigaram a essa união. Ela tentou convencê-los a mudarem de ideia, mas não teve jeito.

Casados, eles mal se tocavam. Cada um dormia nas extremidades da cama. O marido continuou frequentando os prostíbulos e ela sempre ficava doente. Chegou a engravidar algumas vezes, mas todos os fetos eram expulsos pelas suas dores de alma e dos cálculos renais.

Um dia seu marido estava fumando cachimbo e quando acabou de fumar ela lhe disse:

"Você não deve mais continuar a gastar dinheiro com as mulheres do prostíbulo. Gaste esse dinheiro com o tabaco. Aí você pode se sentar e descansar um pouco enquanto dá umas baforadas. Você me explica o que essas mulheres fazem que eu mesma farei".

E assim aconteceu. Ela passou a fazer com o marido tudo o que as putas faziam e o dinheiro economizado era investido na construção da casa e ainda sobrava para comprar tabaco.

Devido o aumento das dores advindas dos cálculos renais, os médicos receitaram que essa senhora fizesse tratamento com águas medicinais. Ela foi se tratar nas termas mais famosas da região. Hospedou-se num hotel luxuoso que tinha até escrivaninha sobre a qual colocou seu caderno preto onde escrevia escondida de todos.

Nesse hotel, conheceu um veterano que ali estava para também tratar suas dores de alma e dos cálculos renais. Estabeleceram uma relação muito prazerosa de companheirismo, conversas e risadas. Ambos eram casados, mas se permitiram viver uma certa história de amor.

O tempo em que estiveram juntos foi curto, mas eles se amaram de verdade e se permitiram realizar tudo aquilo que não era vivido com as suas oficiais companhias, movidos pela coragem com que  Paolo e Francesca se amaram e aceitando todos os riscos de também serem mandados para o inferno.

Ela dizia que o amor com ele era mais demorado porque lhe oferecia muitas carícias antes de penetrá-la e a fazia desmaiar de prazer. E agradecia a Deus os cálculos renais que tinha, pois sem eles jamais teria conhecido o veterano.

Tudo aquilo que o marido havia lhe ensinado sobre as mulheres do prostíbulo, ela fazia com o veterano. Ela encarnava a presa; a escrava; o almoço; a mocinha; a musa; a cadela; a empregada; a preguiçosa e a gueixa. Fazia tudo com muita dedicação.

Quando ela se fazia de almoço, o veterano colocava comida em cima dela como se fosse uma mesa posta e espalhava geleia, ensopado ou creme por seus seios, e também colocava pedaços de fruta nos lugares mais íntimos e depois a comia toda.

Entretanto, de todas, o veterano preferia a gueixa, quando pedia a ela para contar histórias que o distraíam dos problemas do dia a dia, e ela, toda vestida, parecia que não ia fazer amor com ele que gostava de ouvi-la e de considerar as coisas que ela falava.

Ele a chamava de Cadela bonita e também de princesa, mas nunca de louca como os outros a chamavam. Dizia que ela não era louca coisíssima nenhuma; "era uma criatura feita por Deus num momento em que Ele não queria fazer uma mulher, dessas feitas em série."

Depois, voltou ao convívio do marido e logo conseguiu engravidar. Teve um filho que tornou-se músico. Ele demorou um pouco a se casar e a mãe chorava com medo de ter transmitido ao filho a loucura que ela imaginava ter sido a causa de ter afugentado tanto o amor.

Uma vez ela viajou com o marido e o filho a Milão para visitar a irmã. Não sabia que essa cidade era tão grande e, com alegria, dirigiu-se até lá esperançosa de encontrar o veterano. Procurou, procurou, mas não o encontrou. Nem aproveitou a viagem e voltou de lá muito triste.

O filho se casou e lhe deu uma neta que é a narradora da história. Elas eram bastante unidas, pois a mãe da menina jamais impediu que a filha gozasse da companhia da avó paterna e não a considerava louca como os outros.

A avó começou a perceber que estava ficando velha e tinha muito medo de morrer, pois achava que Deus estava muito ofendido já que tinha lhe dado muitas coisas e mesmo assim ela não conseguira ser feliz. Também sentia muita culpa por não ter amado o marido que era tão bom e ter gostado mais do veterano do que de todas as outras coisas.

Ela contou à neta que havia entregue o caderno preto com suas anotações ao veterano, mas quando ela faleceu, o caderno foi encontrado dentro de uma parede da casa onde morava e que estava em reforma para futura moradia da neta. O operário entregou o caderno à neta. Dentro dele havia uma carta que o veterano havia mandado para aquela "gentil senhora", na qual dizia:

"Fiquei lisonjeado e acho que também ligeiramente envergonhado com tudo o que imaginou e escreveu a meu respeito. A senhora me pede para avaliar o seu relato do ponto de vista literário e pede desculpa pelas cenas de amor que inventou, mas acima de tudo por aquilo que de verdadeiro escreveu sobre a minha vida. Diz que sente como se tivesse me roubado qualquer coisa. Não, minha cara amiga, escrever sobre alguém como a senhora fez é um presente. Por mim, não deve se preocupar com nada. O amor que inventou entre nós me comoveu e ao ler, me perdoe a ousadia, quase lamentei que esse amor não tenha existido de verdade. Mas conversamos tanto, fizemos companhia um ao outro, até demos algumas gargalhadas juntos, tristes como estávamos, naquele lugar, não é verdade? A senhora com todos aqueles filhos que não queriam nascer, eu e minha guerra, as muletas, as suspeitas. E tantos cálculos nos rins, a senhora me diz que ficou grávida de novo, mal voltou das termas, e que tem outra vez esperança. Desejo de todo o coração que a criança nasça e gosto de pensar que a ajudei a expelir os cálculos e que nossa amizade contribuiu, de alguma forma, para fazê-la recuperar a saúde e a possibilidade de ter filhos. A senhora também me ajudou, as relações com minha mulher e minha filha melhoraram, estou conseguindo esquecer. Mas há ainda algo. E imagino que rirá ao ler aquilo que estou prestes a lhe contar: já não ando tão desmazelado como meses atrás, lá nas termas. Deixei de usar sandálias e meias de lã, e camisetas e calças amarrotadas. A senhora me inventou de camisa branca e engomada e sapatos sempre engraxados e gostei de mim. Antigamente, era assim mesmo. Na Marinha, ai de quem não estivesse sempre um esmero.
Mas voltemos ao seu relato. Nunca deixe de imaginar histórias. A senhora não está louca. Nunca acredite em quem lhe disser coisa tão injusta e tão maldosa. Escreva. Sempre."

Então, minha avó terminou de me contar o livro que acabara de ler: "Minha filha, esse veterano realmente existiu como um grande amigo, mas a história de amor entre ele e a senhora fora toda imaginada e criada por essa mulher que amava escrever e, por isso, sempre fora acusada de louca".

Sei que minha avó chorou ao fim da história porque havia entendido o motivo de ter sido presenteada com aquele livro. Apesar do choro, ela estava muito feliz pelo presente e pelo amigo que ela comparou ao veterano.

Prometeu a si mesma nunca mais permitir que alguém dissesse a ela que estava louca como pretexto para atingi-la pelo que lia ou escrevia. A partir daquele dia, o meu avô poderia chamá-la de cadela, de gueixa, de musa, de mocinha ou até mesmo de princesa, mas nunca de louca.

Depois que terminou de me contar tudo, minha avó ligou para o seu amigo, agradeceu-lhe mais uma vez o livro e a amizade e disse-lhe estar pronta para ser presenteada com mais obscenidades.


FIM.





































Comentários

  1. Ana, Aninhaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa, esta resenha ficou espetacular. Seduz e encanta e desperta em quem a lê o desejo irresistível de ler o livro. Você uma escritora nata.

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