Casa e comida
Numa casa tem que ter comida. Não aquela que se pede via aplicativo e chega pronta e embalada. Mas a comida se fazendo, preparada com mãos próprias. O fogo aceso. Alimentos cortados na hora, barulho de panelas, o borbulhar do cozimento, o anúncio da fome intensificado pelo cheiro do tempero a invadir ambiente e vizinhanças.
"O almoço tá pronto?"
"Quase."
Sentados à mesa, uma conversa e outra, "passa a farinha", "a salada", "a pimenta", o olhar inquisidor do responsável pelo preparo sondando os rostos a fim de constatar se as expressões são de satisfação. Enfim, a pergunta que não cala. "A comida está boa?"
Na pia, louças sujas. Saciedade. Por que não uns minutinhos de cochilo?
Aqui em casa, há tempos, não se via o acender das chamas. O fogão estático, suspenso de sua principal função de cozinhar alimentos, quando muito, só fervia a água do café. "O cafezinho não pode faltar". Parado, imóvel, quieto, ao olhá-lo era como se fizesse um apelo mudo para que fosse o mais rapidamente utilizado a cumprir seu destino de fogão.
Preguiça? O fato é que não queria me mover à cozinha de jeito nenhum, desculpando-me com o discurso de que não é nada animador cozinhar apenas para mim mesma. Então, me dirigia a um restaurante onde tudo encontra-se ao alcance da vontade de comer, sem que para isso haja minha participação, salvo para colocar a mão na carteira e pagar o preço da comodidade.
Além do mais, a falta de vontade de lavar louças e lidar com demais atividades domésticas me tomou nos meses que se sucederam à mudança de cidade. Nesse período, me autointitulei madame. Faltava-me disposição para as repetidas tarefas de casa. Tratei de colocar longas unhas postiças que dificultava o manuseio de coisas simples, até mesmo de escrever. Um álibi que usei a fim de curtir sossegada a minha baianidade por tanto tempo relegada. Na verdade, só queria me deitar no sofá ou sentar na poltrona e ler meus livros em paz. E que tudo viesse a mim. Estava pronta para receber.
Em Brasília, cozinhava muito. As fotos que chegam no celular dos bonitos e caprichosos pratos não me deixam mentir. Houve um tempo em que os preparava com a maior dedicação e zelo possíveis. E amor!
Gostava de convidar amigos e colegas para jantarem e os acolhia com alegria e mesa farta. "Mas que pessoa prendada!" Se a eu que habita em mim hoje presenciasse tal cena não acreditaria em tamanha proeza. Era movida pelo desejo de agradar aos que se moviam até meu apartamento. E de fazê-los querer voltar. Sentirem-se bem recepcionados e, o mais importante, demonstrar que aquilo era realizado de bom coração e bom grado.
Mas gostava ainda mais de cozinhar para o homem que amava, e amo, afinal, quase como prova de que a demonstração de amor passa pela ânsia e gosto de alimentá-lo, nutri-lo.
No encontro entre pessoas há uma fome que não se sacia, uma falta que não se preenche. Uma anseio que não se completa. Uma interrogação que carece de resposta. É como se o outro se dirigisse a nós com fome de algo tão elementar como o leite e o afeto maternos e por faltar o essencial oferecêssemos o pouco que temos. E o pouco que temos é tudo que podemos. "Eu lhe dou pão, já que não posso dar o que procuras. E o que procuras não tenho nem para dar a mim mesma que também preciso."
Quando criança adorava ir atrás de comida na casa de minha avó. "Vó, que tem pra comer?". E ela dizia que só abria a boca para dizer que estava com fome. Mal sabia que era mesmo fome insaciável a que sentia. Então, dava-me salgadinho, bolacha recheada, pipoca doce, refrigerantes e tudo o mais que devorava satisfeita por ter avó dona de venda.
Era ela quem fazia o almoço mais saboroso que provei na vida e do qual jamais esqueci mesmo tendo frequentado restaurantes de pratos elaborados por master chefs. Arroz, feijão, macarrão, carne batida ou cozida e até mesmo a salada de alface e tomate preparados pela vó tinham gosto especial. Beiju, coalhada, abóbora com leite me alimentavam. Seu afeto nutria minha faminta alma de menina. Nada deixou faltar. Se não me saciou por completo, pouco importa. As tentativas foram infindáveis. A memória é rica desses registros que o tempo não dilui.
Agora a chama do fogão reina de novo em minha casa e reacende o sabor da boa comida caseira. O feijão está no fogo. O chiado da panela marca o correr das horas. É noite. Transito entre a cozinha e a sala, entre o cheiro do alho e do papel de um livro novo. Alimento corpo-espírito. Sozinha no apartamento, cozinho apenas para mim. Porque me amo, me nutro. Porque os amo, alimento-os.
Não temos força para amar se nos falta o pão de cada dia. Casa tem que ter comida e amor para que o espírito se fortifique e então se revele.
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