E agora?
Há livros espalhados por todos os cantos da casa. Gosto de vê-los e de tê-los ao alcance dos olhos e de minhas mãos. Não me lembro a primeira vez em que fui seduzida por um livro, mas essa paixão me acompanha desde muito menina. Era criança e invadida por esse encanto que jamais me abandonou, que perpassa dias incontáveis.
Olho-os na estante, na mesa da sala, na escrivaninha, no criado-mudo, do suporte ao lado do sofá. O carro está cheio deles. Outros estão para chegar. Tantos assuntos que nem saberia catalogá-los. Alguns lidos, relidos; outros, intactos, sequer desembrulhados, conservam-se como os recebi. Já não tenho pressa de lê-los. Algum dia, talvez, os toque. Ou, quem sabe, jamais os terei dentro de mim.
Às vezes me dirijo a um deles e abro numa página qualquer. Eis que algo me chega como por encomenda. Uma frase salva o dia. Uma revelação salta aos olhos. E há aqueles momentos em que os vejo com total desesperança como se nem todos os livros do mundo fossem capazes de me dizer a verdade que meu coração precisa.
Mas eles me cercam e me comprazo em tê-los como objetos silenciosos e dizíveis. Decoram o lar e minha vida. Inundam minha alma. Provocam meu corpo e todas as sensibilidades que a linguagem é capaz de aguçar. Fazem-me companhia em dias tristes ou alegres, nublados ou ensolarados, de medo ou de amor.
Livros. Descanso de um noutro. Revezo temas e histórias. Enriqueço com os vários que me povoam. Entre um e outro, expando, exalto. Brindo o gosto do saber que me atravessa, celebro o prazer de ler com esse meu corpo vazado e marcado por cada um que chegou até mim de maneira discreta, como quem nada quer, ou arrombando portas e muralhas.
Leio entre quatro e sete "ao mesmo tempo". Até mais. Sinto necessidade de transitar, de não estacionar num somente. De me deixar ser transpassada por tantos saberes quantos possíveis. De me abrir a universos vários. Devorar o mundo com os olhos.
Certa vez, ao conversar com uma mulher, ela me confessou que lê um livro por vez e só parte para o próximo após terminar por completo o anterior. Disse que até tentou ler mais de um, no entanto sentiu como se fosse uma traidora, uma amante. A mim, isso não incomoda, e creio que, aos livros, muito menos.
Hoje peguei "Todos os contos", de Clarice Lispector. Quis ler a crônica "Brasília" que tanto me inebria. Estou com tantas saudades de Brasília. Não há um só dia que não penso no tempo em que lá vivi. Não é só a falta do lugar que me ocupa, mas também de algo em mim que se perdeu ao estar distante.
Parece que não estou cabendo onde estou. Uma sensação tão estranha acompanhada da culpa de não me sentir pertencente no espaço onde me encontro. É como se estivesse fora de mim, me olhando do alto e pensando: "e agora?"
O livro encontra-se com a capa rasgada e todo rabiscado de tanto que leio e releio. Quando gosto muito de algo quero voltar sempre no "algo", como quem anda em círculo. É a repetição, enfim.
O livro está aos pedaços como o álbum de fotografias do casamento do pai e da mãe, que não mais existe porque estraguei todo de tanto ver e rever. Minha mãe conta que, quando criança, eu via tanto, tanto e tanto que o álbum se rasgou todo, de tanto que eu repetia o ver.
"Por que eu via tanto, mãe?"
"Não sei."
Gostaria de abrir um livro que pelo menos me desse a resposta do que devo fazer, que caminho seguir, os riscos que posso correr, as coisas que perderei por teimosia, as que ganharei por ousadia. Gostaria de consultá-lo como quem vai até o oráculo em busca de orientação. E que de lá saísse sem o peso da escolha.
Quero a orientação de Deus ou de Eu, porque os livros, hoje, se ocultaram todos.
Eis que o peso das dúvidas encharcam minha alma. E é o corpo que paga o pecado. É o corpo quem está preso nesse chão que piso.
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