Um dia é uma vida
É que não sou dada a viagens. Algumas pessoas se surpreendem ou até se assustam quando digo não ter interesse em viajar. Acreditam que por eu ser demasiado livre e amar ler, o gosto por viagens seria quase inato ou mesmo condição para gostar das demais coisas de que gosto. Mas não é bem assim.
Não que seja inflexível no sentido de dizer "não viajo de forma alguma". Se der vontade, vou. E, quando vou, encontro uma maneira de me entregar totalmente à experiência de estar naquele lugar com aquelas pessoas e com as coisas que me vão surgindo. Mas confesso que não é algo que me ocupa a cabeça ou que se constitui num desejo incessante. Além do mais, sou daquelas que se satisfaz em ver as imagens de um lugar pela tela. É como se já me enxergasse ali. Como se, ao simplesmente olhar, conseguisse me transportar para aquele clima e ambiente. Não sei bem explicar. Sinto.
Logo que fui embora de Brasília chegou-me a notícia de que foi aberto um café temático que recebeu o nome de Café Clarice, em homenagem a Clarice Lispector. Ficava olhando as fotos pelo instagram, lastimando não estar lá para frequentar o local e imaginando o dia em que estaria ali de corpo presente.
E aí chegou o dia de conhecer o Café Clarice. Nem a expectativa dava mostras. Nada me surpreendia naquele lugar. Conhecia-o por fotos e vídeos e a impressão foi a de que sempre estive ali. É como se tempo e espaço não existissem. De algum modo, estive antes de estar.
Sei que a maioria das pessoas adoram viajar e se deslocar no espaço. Mas, definitivamente, não é o meu caso. Amo ficar em casa comigo e com minhas coisas. E, caso concorde em ir para outro lugar, três dias é mais que suficiente para mim. Em pouquíssimo tempo, já quero retornar ao meu castelo onde me sinto a pessoa mais viajada do mundo.
Certa vez, alguém me disse que viajar é bom para que tenhamos contato com coisas e pessoas diferentes, para conhecer outras culturas, ver a marca da diversidade em cada local, etc. e tal. Não sei se preciso viajar para perceber a marca da diferença nas coisas e nos seres.
Em primeiro lugar, vejo com total naturalidade a diversidade do que existe e concebo muito mais que sejamos diversos que iguais. A diferença do outro não me espanta. Pelo contrário, confirma o que apreendo da existência. Há coisas que nos igualam e há coisas que nos diferenciam. Não sinto que preciso atravessar oceanos para captá-las. A mim, o outro, o que quer que ele seja ou apresenta, faz parte da variabilidade humana. É como diz Guimarães Rosa, "vi de tudo, neste mundo!" A gente vê de tudo mesmo. Bem sei!
E mesmo sem, a priori, querer ir... Fui. A serviço. Viagem a serviço, por estrito cumprimento do dever legal de funcionária pública, sujeita às ordens decorrentes da hierarquia funcional. Sobre hierarquia, tenho duas considerações a fazer: não gosto de mandar e não gosto de obedecer. Sou anárquica por natureza. E dentro dessa anarquia vou contornando num zigue-zague danado. São anos e anos de prática com sucesso.
No momento seguinte nem parecia mais aquela pessoa que relutara ceder. Iria de coração e peito abertos, afinal de contas era só assistir a uma homenagem. Nem era bem trabalho o que iria fazer. Ao contrário de outros que se deslocam para realizar atividades árduas ou ir a locais sem grandes atrativos, eu iria para a capital do estado. O mar estava à minha espera. Ah! Mar! Amar é o que mais quero.
O dia todo dentro de um carro, com a atenuante de estar em boas companhias. Horas a fio em que não havia mais posição possível para um corpo cansado. Horas em que falamos sobre tudo. Risos, gargalhadas... Histórias, livros, investimentos, marketing, filhos, relacionamentos, filmes, trabalho. E gente! O que é ser gente?
Todos aprendendo na escola da vida. Oportunidade de conhecer os colegas além da empresa e das reuniões, além daquilo que intitulamos profissionalismo. Oportunidade de olhar nos olhos, de falar sobre os medos e os anseios, as insatisfações, as esperanças, sobre o que nos move e comove. E de suportar o silêncio que cada um faz quando as palavras descansam. Oportunidade de ir além das aparências. Essência!
À noite, hotel, comer e dormir. O outro dia principiaria com as suas vinte e quatro horas. Nem mais, nem menos. Saberia aproveitá-las como nunca. Fiz essa promessa a mim mesma. Lembrei da frase de minha mãe: "Um dia é uma vida." Faria dele uma vida, afinal de contas, a viagem totalizaria três dias, um de ida e um de volta. No meio, um só dia em que tudo seria possível. Em que poderia acontecer tudo, inclusive nada. Mas não sou das que desperdiçam tempo. Não sou daquelas que não arranjam histórias para contar.
Acordei cedo e fui em direção a um café que escolhi de forma aleatória pela internet. Não chequei nem o nome do bairro. Apenas apareceu na lista dos melhores. E eu que gosto mesmo do bom e do melhor, com a ressalva de que já não disfarço minhas preferências, ainda que sujeita a julgamentos, não titubeei em momento algum a respeito dessa escolha cega. Apenas fui.
No caminho observava a cidade de ruas, prédios, paisagens. E gente. Mas o que me chamou a atenção, porque não tinha visto com os próprios olhos nada parecido com aquilo, foram as casinhas pobrezinhas em cima dos morros, umas empilhadas sobre as outras. Um aglomerado.
Só pensava que tudo aquilo poderia desabar a qualquer momento. E me questionava: será mesmo que há pessoas morando sob essas condições? Perguntei ao motorista se eram as favelas de Salvador, e logo corrigi, se eram as comunidades. Como se a mudança de nome alterasse o fato de existir moradores sob péssimas e precárias condições.
Fiquei chocada em ver a contradição: de um lado, belos e altos prédios projetados por arquitetos e calculados por engenheiros. O céu é o limite para eles. Do outro, construções a Deus dará, sem o menor planejamento e prestes a desabar.
Realmente não estava acostumada com essa realidade dúbia e chocante. Na capital federal há organização, porque concebida para ser o centro do poder. Há proibições de todas as ordens, inclusive no que diz respeito à construção civil. Não é à toa que acabou sendo apelidada de nosso "quadradinho" e a gente fica tão quadrado morando lá que esquecemos da existência de círculos de pobreza e de miséria.
Salvador me fez aterrissar. Até então me encontrava nas nuvens, voando com as asas do avião que formou Brasília.
"Tá demorando a chegar, moço! Esse café é longe assim?" - perguntei.
"Sim. É na Barra."
"Hummm! Na Barra?"
"Aproveita para conhecer a cidade."
"Sim, é isso que estou fazendo."'
Passei a manhã tomando café expresso e lendo o livro "Como trabalha um psicanalista?", de J.D. Nasio. Saboreava cada palavra, cada frase. Um ambiente bonito e aconchegante, um café e um livro. Estava no céu. Lembrei-me de tantas vezes em que passei tardes inteiras assim como a quem nada falta. Plena de leitura. Plena de só ser.
Saí em direção à praia e antes que chegasse ao mar avistei outro café. Entrei para conhecer o lugar e tirar algumas fotos. Sentei-me por uns instantes enquanto bebia mais um café.
A alguns metros, já conseguia enxergar o encontro do mar com o céu. "O infinito é azul". Estava diante do infinito, da imensidão, do mistério que os olhos não alcançam. Ouvi as ondas, pensei em coisas e desejei outras. Silenciei o coração. Fechei os olhos.
Adeus mar!
Cumpri a agenda de trabalho que não era tão trabalhoso assim. Revi pessoas, ouvi discursos, sorri, aplaudi, me emocionei e me orgulhei de estar ali. Houve uma reconciliação com todos os anos de serviços prestados e a sensação de que não poderia estar em outro lugar que não aquele. Eu estava "em paz com o mundo e comigo".
Depois, bar, festa e diversão. Era o fechamento do dia na noite. Música alta, bebida, risada, brincadeira e muita dança. Dancei com tantos quanto pude. A alma solta, o corpo solto. Livre e leve como pluma.
A viagem valendo a pena. As coisas se encaixando. O mundo rodando e eu girando com ele. Tudo correndo perfeitamente como jamais planejado. É que "tudo vale a pena se a alma não é pequena."
"Um dia é uma vida", ensinamento de minha mãe.
E eu que de boba nada tenho estou aqui testemunhando com minha própria experiência que ela está coberta de razão.
Parabéns Filha,nunca esqueça um dia e uma vida te amo ❤️
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