Manifesto

Ando lendo Nietzsche, esse filósofo tão mal compreendido, mas tão necessário para os nossos dias. Dias de exaustão. 

O mal-estar paira no ar. Poucas são as pessoas com as quais converso que não dizem quase em uníssono: estou exausto. Poucos são aqueles que não lamentam a segunda-feira e iniciam a semana sonhando com o final de semana. Tenho a impressão de que o sonho tem girado em torno das folgas, dos feriados e das férias. Vivemos aquilo que o escritor Byung-Chul Han intitulou "A sociedade do cansaço".

Por que Nietzsche? Porque ele foi um dos primeiros a perceber que não suportaríamos a sociedade que estávamos criando. Inventamos uma civilização que nega a vida. Daí o niilismo. 

Oh! Ao pensar em niilismo, como não citar um grande trecho de Clarice Lispector? 

Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de  joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado como pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

O escritor Luiz Lopes, no livro Clarice Lispector Formas da Alegria, descreveu pontos de encontro entre a literatura de Clarice e a filosofia de Nietzsche, sob a perspectiva da importância da alegria como forma de afirmar a vida, mesmo nas situações de sofrimento e dor. Aceitar a vida como ela se apresenta, sem ilusões ou mecanismos para negá-la. Não mortificar a vida enquanto se vive, não morrer antes da morte. 

Por essas e outras, Nietzsche é tão combatido. Sua ode é à alegria. E como ponderou Gilles Deleuze: 

O poder requer corpos tristes. O poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A alegria, portanto, é resistência, porque ela não se rende. A alegria, como potência de vida, nos leva a lugares onde a tristeza nunca nos levaria.

A modernidade fortalece a tentativa do humano de justificar e controlar a vida por meio da razão. Agora, não nos valemos de Deus para explicar o mundo, mas da ciência. É o saber criado pelo homem que nos trará o progresso, a saúde, a realização e um futuro melhor. Matamos o presente, que é único tempo no qual podemos sentir e viver. Matamos Deus. Em troca de quê?

Mas não estamos suportando a mortificação em vida. Há respostas a tudo isso: a depressão é a doença mais incapacitante do século XXI, a terceira maior causa de morte de crianças e adolescentes é o suicídio, os transtornos mentais aumentam e assumem formas jamais vistas, que o diga o DSM, o consumo de medicamentos psiquiátricos só cresce, os consultórios de psicólogos e psicanalistas nos esperam sedentos para ouvir nossas queixas. 

Dificilmente conversamos com alguém que não tenha desenvolvido um quadro de ansiedade, que não toma remédio para dormir, para acordar e para se manter vivo ao longo do dia.

Precisamos de um profissional que nos diga o que comer, o que vestir, como malhar, como criar os filhos que não temos tempo de criar, quantos litros de água devemos tomar; precisamos perseguir modelos de corpos inalcançáveis, rostos que não envelhecem; já não podemos ser velhos nem de corpo nem de experiência e bagagem. 

Submetemo-nos a procedimentos cirúrgicos dos mais variados, harmonização facial que nos descaracteriza. Os dentes devem ser brancos como neve, os seios duros e rijos como bolas de capotão. Creatinina, melatonina, whey protein, arginina... passaria horas e horas em função de uma lista infindável de produtos que prometem e prometem.

A filósofa Viviane Mosé, em Nietzsche hoje, ressalta: Tem sempre alguém que sabe por você, que pensa por você, enquanto você trabalha como um louco para pagar pessoas para fazer algo que em última instância você, se tivesse disposição, faria: viver. Terceirizamos a vida. E consideramos uma conquista não ter que agir, assim ganhamos tempo acumulando e compartilhando os rastros destes gestos, os retratos desta vida que não vivemos.

Montamos, meticulosamente, formas de vida e ambientes castradores. Dentre eles, o trabalho se destaca como um dos mais cruéis. Segundo informações, mais de 70% dos trabalhadores no Brasil se sentem desmotivados. Cerca de 60% estão insatisfeitos em seus empregos. Trabalhamos com o que não gostamos para comprar o que não precisamos. Ou o que recebemos como contraprestação pelo nosso tempo e nossa vida é insuficiente para custear nossas despesas mínimas.

As mulheres parecem ser as que se percebem mais afetadas por esse sistema enlouquecedor. Mas, em geral, como os pais podem acompanhar o desenvolvimento e o crescimento de seus filhos se destinam, no mínimo, dez horas do dia ao trabalho? 

Como usufruir de lazer, descanso, ócio? Qual o espaço e o tempo para exercer a criatividade? Ou quem sabe fazer de si mesmo uma obra de arte? E o pior é perceber que nos calamos e, muitas vezes, somos opressores uns dos outros ou concordamos com aqueles que oprimem.

No livro Discurso sobre a servidão voluntária, o filósofo francês Étienne de La Boétie, em 1576, tratou da tendência humana de dispor de sua liberdade de forma voluntária. E por que não, me valho de Lacan, até com certo gozo?

Diz Étienne: Eu não lhe pediria tão vivamente para recuperar a liberdade se lhe custasse alguma coisa. Não existe nada mais caro para o homem do que readquirir o seu direito natural e, por assim dizer, de animal voltar a ser homem. Contudo, não espere dele ousadia tão grande. Nem quero que prefira a segurança duvidosa de viver miseravelmente a uma esperança incerta de viver como lhe agrada.

O historiador Leandro Karnal, ao discorrer sobre a obra de La Boétie, destaca: Para Étienne, só existe uma prisão possível: aquela que você mesmo construiu e cuja porta, por estranho deleite, você fechou. Saiba sempre que toda servidão é voluntária. Sua liberdade é sua, e você pode entregá-la a qualquer um que desejar. Os tiranos agradecem.

Percebe-se que, mesmo diante do desenvolvimento tecnológico, que poderia ser desfrutado para nos libertar, inclusive no âmbito do trabalho, não conseguimos utilizar certas ferramentas em nosso proveito. Costumo dizer que não estamos à altura de nossas próprias invenções. Avançamos em técnica, mas nossa mentalidade não acompanha o seu ritmo.

O que justifica, por exemplo, estarmos submetidos à mesma jornada de trabalho estabelecida em 1930, apesar de grande parte de nossas atividades serem executadas via internet e as comunicações serem realizadas em tempo real? E de realizarmos nossas funções em muito menos tempo? O que dizer de uma lei trabalhista que remonta a 1943?

A deputada Erika Hilton apresentou Proposta de Emenda à Constituição, na qual sugere que a jornada semanal de seis dias de trabalho por um de descanso seja substituída por quatro dias de trabalho por três de descanso. 

Queremos e precisamos descansar. Ter tempo para cuidar de nós, de nossos sonhos, de nossos filhos e não de deixar a vida passar enquanto servimos a interesses escusos dos donos do poder, em especial, do poder econômico.

O projeto encontrou respaldo e apoio nas redes sociais, modo de que dispõe grande parte do povo para dizer CHEGA! De verdade? Já deu o que tinha de dar. Que palhaçada é essa? Já não é demais cantarolar Titãs: "A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só dinheiro. A gente quer dinheiro e felicidade."

Seja lá o que cabe dentro da palavra felicidade, parece que não estamos sendo felizes. Ainda mais se não contarmos com a ajuda dos remedinhos e de tantas otras cositas más e que tanto nos faz mal.

Como imaginar que haja luta por direitos iguais entre homens e mulheres, se mulheres, caso melhor revessem sua condição, chegariam ao entendimento de que deveriam ser tratadas de modo especial e até mais benéfico? Ainda mais quando se tornam mães. 

É preciso nos debruçarmos sobre as significantes palavras de Sidonie Colette: A mulher que se acha inteligente reclama igualdade de direitos com os homens. Mas a mulher que é realmente inteligente não o faz.

O que ela diz senão: mulheres, protestem por direitos que levem em conta suas particularidades naturais, sociais e culturais por serem mulheres.

Certo dia, encontrei-me com uma colega de trabalho, cabisbaixa, visivelmente triste e perguntei-lhe o que houvera. Era aniversário do filho de apenas dois anos e ela teve de deixá-lo na escola e ir trabalhar. Outro dia, teve de deixá-lo doente. Como assim? Uma mãe não pode ser liberada para estar com o filho nos momentos únicos e delicados?

Eu teria ido embora, com ou sem permissão de autoridade. Ou melhor, sequer teria comparecido à empresa e deixado meu filho.

Quanto tempo deixamos de passar com aqueles que amamos e têm significado e importância para nós?

Minha proposta é a mesma de Clarice e de Nietzsche, é a de vivermos plenamente e não abrirmos mão da alegria. É dizer SIM à vida em sua inteireza, o que exige, de certo modo, abrir mão de tanto controle e certezas. 

Diz Mosé: ... afirmar o que nos aflige: não encontrar mais prazer na estabilidade, mas na incerteza; amar a pluralidade, a diversidade, a diferença, o risco; ansiar para que ocorram mudanças.

A ciência deve conviver lado a lado com o mistério. A razão não precisa afastar as emoções, a inteligência pode ser fertilizada pela sensibilidade, corpo e espírito são uma coisa só. Não há que negar uma coisa em detrimento de outra. 

É muito bom não ter que escolher entre ser uma coisa ou outra e poder ser uma coisa e outra - diz Viviane.

Mas não há dúvidas de que para sermos inclusivos, plurais, retornarmos a beber das forças  da natureza e do corpo, amarmos a vida mesmo nos momentos penosos e sermos capazes de sentir genuinamente a alegria será necessário o esforço por desconstruir parte da civilização que criamos, com vistas a construir um devir que não sabemos como será. 

Mas vale o risco. Sei que vale, pois muitas das velhas fórmulas e dos antigos modelos já não nos servem mais.

Fernando Pessoa que nos diga: Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Essa transformação é urgente. Não temos todo o tempo do mundo, como cantou Renato Russo.

Nosso tempo é agora.











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