Não sou pra casar
Falávamos sobre assuntos que jamais teriam fim, mudando de um tema a outro, emendando um no outro até não poder mais. Daí surgiu a palavra casamento e eu disse num súbito: Não sou pra casar. A amiga propôs: "Escreva sobre isso".
Não só escreverei como proponho uma sincera reflexão. Por que não sou pra casar?
A verdade é que não sei.
Ocorre-me que jamais nutri desejos ou sonhos de me casar nos moldes em que via ao meu redor. Minha mãe havia se casado com meu pai e se separado e se casado novamente. Minha vó com vovô. Tias maternas eram casadas, primas namoravam e se casavam e eu sabia de pessoas casadas em volta de mim, longe de mim.
Ao meu juízo, as pessoas se casavam por repetição. "Ah! Então praticamente todos se casam. Provavelmente, este também deverá ser o meu destino" - penso que elas pensavam, se é que pensavam.
Mas eu pensava. E não só pensava como analisava as relações que via sem quaisquer fantasias ou criações que me fizessem devanear a ponto de desejar o mesmo para minha vida. Costumo querer para mim aquilo que admiro ou me apetece, e até hoje jamais me deparei com uma relação ou espécie de cumplicidade que, ao ver num casal, quisesse. Não encontrei modelos que me despertassem. Pelo contrário, quase todas as "uniões", da forma como são constituídas, com suas obrigações, opressões e cobranças infindáveis, mais me oprimiriam que satisfariam.
Além do mais, recuso-me a oficializar em igreja ou cartório qualquer promessa de amor ou de fidelidade. Recuso-me a fazer promessas e acordos futuros tomada por sentimentos ou emoções presentes. Nem obrigaria outra pessoa que o fizesse.
Como dizer que estaremos juntos para sempre se amanhã não seremos mais os mesmos de outrora, se nossos desejos podem ser modificados, se as perspectivas de vida podem ser outras? Se o ânimo que nos juntou ameaça fugir de nós?
E por falar em desejo, não me sinto confortável em exigir que o outro deseje apenas a mim, nem limitá-lo nas suas intenções. O relacionamento a dois corre sério risco de empobrecer os dois, a convivência contínua tende a limitar e depauperar mais que enriquecer ou expandir.
No conto Uma amizade sincera, Clarice Lispector narra a história de dois amigos que se conheceram na escola e que se tornaram inseparáveis e confidentes. Ligavam um para o outro a fim de marcar encontros para colocar as conversas em dia, até o ponto de não terem mais sobre o que conversar. Mas como um sentia a falta do outro, resolveram morar juntos. E foi a partir daí que a coisa tomou novos rumos:
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação. Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então enfim encontrado: uma amizade sincera (...). O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias... Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação da minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
A proximidade entre os dois, a convivência diária fizeram diluir aquilo que mais os empolgavam a estarem perto: a distância que existia entre eles, a falta que sentiam um do outro, o desejo e a expectativa do encontro.
Continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? ora essa. Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
No romance Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, há um momento em que Joana e Otávio vivem o tédio do casamento. Não conseguem estabelecer um diálogo empolgante, seus interesses caminham para direções opostas, a mornidão toma conta. Joana pensa que se tivesse um filho alguma coisa viveria entre os dois, já que nada mais vivia entre os dois, mas em seguida repensa que ter um filho com Otávio não seria a saída, ele que era tão pouco estimulante.
Quem nunca ouviu um casal dizer: Parecia que faltava alguma coisa entre nós? logo após terem filhos. Ou mesmo providenciarem um cachorro ou gato ou papagaio para que algo viva entre eles? Há um momento em que, entre dois, algo pode restar esgotado, desgastado, acabado.
E aí o amante pode ser a "salvação". Há quem diga que a função do amante pode ser "protetiva" do casamento. O terceiro seria aquele que dá o que falta entre dois e cuja existência pode fazer perdurar a relação. Ao contrário do que podem imaginar certos amantes, eles talvez contribuam com algo que, caso faltasse, daria fim ao casamento. Faria com que o faltante tivesse a coragem de se separar a fim de render-se ao seu desejo de ter o que carece. Provido de amante, satisfeito daquilo que o parceiro não mais oferece, o casamento que não está lá essas coisas continua à duras penas. Mas continua.
A existência de um terceiro, seja lá o que seja, pode representar a estabilidade, o tripé estável, como nomeou Clarice Lispector, para que algo possa durar por mais tempo entre dois. Entretanto, o fato de um relacionamento durar mais tempo não necessariamente quer dizer que está sendo fecundo ou estimulante para os envolvidos.
Para muitos, parece que a longevidade é o fator de sucesso do casamento. Não importam de que modo viveram, mas que viveram por longos anos. Em algumas ocasiões, quando casais comemoram décadas de relação, ouço questionamento sobre "qual o segredo para durar tantos anos?". Quanto a mim, penso: de que maneira viveram, o que tiveram de ceder e suportar, que sonhos ou desejos tiveram de afastar, quanto tiveram de se anular? O amor, o respeito, a escuta e a compreensão também duraram todos esses anos? E a admiração mútua, o desejo sexual recíproco permanecem?
Mas devo deixar claro que em nada sou contrária ao casamento, porque não sou contrária ao modo de viver que as pessoas escolhem para si próprias. No entanto, deve se tratar de escolha, não de imposição ou de caminho a que se adere sem o mínimo de reflexão e conhecimento de si mesmo, do tipo: se todos estão indo por aí, também vou por aí. Deve-se pensar: quais os efeitos dos compromissos que estou assumindo perante outrem? Entre eles: serei fiel como o outro quer ou presume que eu seja? E outros tantos...
O que costumo dizer é que devemos conceber outras formas de nos comprometermos e relacionarmos. Quais? As que se adequam à nossa maneira de ser, ao nosso temperamento e estilo de viver. Precisamos pensar em ética do relacionamento, o que costumamos chamar de "combinados", de modo a não declarar vãs promessas ou fazer o outro acreditar que cumpriremos tratativas a que não estamos preparados ou destinados a cumprir.
Quanto ao casamento monogâmico, aquele que não se admite interferências ou fugas, penso que poderia ser conduzido de forma mais leve, com menos exigências, cobranças e limitações, com mais liberdade para ambos, menos repressão dos desejos alheios. Acrescento, com mais aceitação do outro tal como ele é e consegue ser. Menos considerações para que mude aquilo que lhe é tão constitutivo e elementar, como expressa Adélia Prado:
Amor pra mim é ser capaz de permitir que aquele que eu amo exista como tal, como ele mesmo. Isso é o mais pleno amor. Dar a liberdade dele existir ao meu lado do jeito que ele é.
Amar não requer formas nem deve ser aprisionado a modelos antigos que sempre deram mostras de insustentabilidade, sequer a casamento.. Que possamos amar sem assinaturas e promessas. Que possamos amar sem bênçãos, à maneira sapiente de Clarice Lispector:
Às vezes no amor ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor.
Ah! A verdade é que não sou pra casar. A mim, não interessa a designação da mulher de um homem. Importa a fantasia, a miragem, o escapável, o indomável. O não ser para ser plenamente e apenas quando é tudo que mais se quer. Sem mais.
Comentários
Postar um comentário