ALÉM DO QUE SE PODE SABER

Em meus tempos de Brasília, costumava me sentar nos cafés, na companhia de um livro, onde passava horas e horas no deleite da leitura e da bebida forte e quente que, ainda hoje, esquenta os dias e me remete a uma saudade. Um doce acrescentava gosto ao paladar e reforçava o sabor de viver. Viver, que é a minha maior especialidade para a qual não se fazem necessários certificados ou diplomas.

E me punha algumas vezes a escutar as conversas ao lado, como aquela entre duas senhoras. Num tom de tristeza e queixa, uma delas dizia:

Há mais de vinte anos moro nesse lugar, a minha filha mora ao lado, dá para ir a pé, e ela nunca subiu para me visitar.

A outra escutava calada.

E, agora, só tenho ela, pois meu outro filho morreu. Ele era meu filho de verdade, a minha muleta.

Dona Maria morava no mesmo prédio que eu e a via se mover e descer as escadas com dificuldade. Sempre sozinha, passava e deixava aquele odor de quem há muito não tomava banho. Cheguei a pensar: se essa mulher morre dentro desse apartamento, ninguém vai dar por sua falta. Nem mesmo a filha que há vinte anos não a visita.

Mas não tratei de acusar a filha como fazem aqueles que acreditam que os descendentes jamais devem abandonar os pais, seja em que situação for. Antes de ceder a qualquer ímpeto de julgamento, me pus a pensar:

Como terá sido a relação entre mãe e filha durante a vida?

Será que essa mãe foi presente e atendia os apelos e as necessidades de afeto da menina?

Essa mãe não demonstrava desde sempre preferência pelo outro filho? Não comparava os irmãos para reforçar as qualidades de um em detrimento do outro?

Essa mãe lhe dava amor? Protegia-a? Fazia-a se sentir acolhida?

A relação entre elas foi regada ao longo do tempo com bons sentimentos?

Essa mãe amou a filha da maneira como a filha gostaria de ser amada?

Perguntas sem respostas, eu sei, e até imaginei também que essa mãe pode ter sido amável e dedicada e, ainda assim, a filha não fora capaz de aceitá-la e compreendê-la.

As relações familiares são mais complexas do que podemos supor. Há preferências, desentendimentos, sentimentos velados, incomunicabilidades, mágoas disfarçadas, ressentimentos que corroem.

Família é base que nos constitui, mas nem sempre é sinônimo de segurança e compreensão. A Psicanalista Maria Homem contradiz a máxima “família é a melhor coisa que existe”, e diz: “Não é o que a clínica nos mostra.” É no divã, numa sessão de análise, diante de um ouvinte distante e imparcial, que se pode expor tudo aquilo que ficou reprimido e recalcado por anos e anos.

Você sempre preferiu meu irmão. Seu filho é um vagabundo e você o protege. Ele é um irresponsável – dizia um filho para a mãe. Ela não retrucava.

Minha mãe nunca fez minhas vontades e até rejeita meus filhos. As netas dela são só as filhas de minha irmã – magoada, a mulher acusava.

Só eu apanhei. Em meus irmãos, a senhora jamais bateu – choramingava outro.

Na crônica “O caso da caneta de ouro”, Clarice Lispector narra o episódio em que ganha uma caneta de ouro, que passa a ser muito cobiçada pelo seu filho mais novo, a quem ela promete dar o objeto no futuro. Logo, ocorre-lhe pensar:

Mas – tenho dois filhos. E por que o outro não havia pedido. Fiquei triste. Achava mais certo que houvesse uma disputa franca entre os dois a propósito da caneta de ouro, e não que um deles nem sequer pedisse.

Inconformada, ela se dirige ao filho mais velho e questiona-lhe por que também não lhe pediu a caneta. Entre uma resposta e outra, a conversa vai se aprofundando, até ouvir a revelação:

Eu já pedi muitas coisas e você não me deu nada.

A acusação dura e contundente surpreendeu Clarice, que não sabia que o filho mantinha queixa de tempos remotos. Ela tenta esmiuçar, saber dele o que pediu que ela não lhe deu.

- Quando eu era pequeno eu pedi uma câmara, quer dizer, um desses tipos de pneus que servem de boia para eu ir à praia.

- E eu não dei?

- Não.

- Você quer que eu dê agora?

- Não, agora não preciso mais.

- Que pena que eu não tenha dado.

O filho mais velho revelava uma mágoa antiga que o fazia acreditar que de nada adiantava pedir coisas à mãe, pois ela não lhe daria mesmo.

Ao que me parece, só há dois modos de não manifestar preferência entre os filhos: não os tendo ou tendo-o único. Preferência remonta ao tempo de Caim e Abel, de Esaú e Jacó. É um drama humano que ainda não foi resolvido, se é que será.

Que mágoas e queixas carrega a filha de Dona Maria dentro de si para não visitar a mãe por vinte anos? Quais foram reveladas e quais serão jamais confessadas?

Meses depois, retornei a Brasília e tive notícias de Dona Maria que me confirmaram o que previra. Encontraram seu corpo no apartamento três dias depois de morta. O odor espalhou por todo o prédio e fez chamar a atenção dos vizinhos.

Alguém teria sentido a falta dela se o mal cheiro não anunciasse?

Sozinha, sem filhos, sem ninguém, morta.

Mas não terá a filha, em outros tempos, morrido primeiro por faltar-lhe algo que a mãe não fora capaz de lhe dar?

Eu mesma não sei.

E, talvez, ninguém jamais saiba.

 

MAIARA VEIGA

 

 

 

 

 

 

 

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