QUEM VÊ OS CLOSES, NÃO VÊ AS QUEDAS

Lembro-me agora de um episódio que me ocorrera quando criança. A casa de minha mãe e a de minha avó localizavam-se na mesma rua, a poucos metros de distância uma da outra, de modo que transitava o dia todo para lá e para cá, andando ou correndo.

Na calçada da casa de minha avó reuníamos toda a família ao fim da tarde para conversar, relembrar casos, dar risada, tomar café, e por que não brigar?

Mas lembro de que no mais das vezes ríamos muito. Ríamos tanto que alguns envergonhados mudavam de rota para não passar frente a nós devido à desconfiança de que poderíamos inclusive rir deles.

Numa dessas tardes, dirigi-me à casa de minha mãe para tomar banho e logo após retornar à da minha avó. Banho tomado, eis que quando tento ultrapassar a calçada meu pé direito esbarra no meio fio e caio indefesa.

Senti que não me ferira, mas meu primeiro pensamento foi de ficar imóvel e inventar a quem viesse ao meu encontro que havia me machucado, apenas para justificar a permanência no chão como quem desmaia.

Todos ririam de mim se não atuasse, se demonstrasse que estava tudo bem e que não havia passado de uma queda boba. Mas como havia fingido algo mais grave vieram ao meu encontro com ar de muita preocupação para me salvar.

Sempre vi pessoas rirem dos tombos dos outros antes mesmo de oferecerem ajuda ou mesmo checarem se haviam se machucado. Eu nunca entendi porque pessoas caindo provocam tantos risos.

Existia um programa de televisão exibido aos domingos que destinava um bom tempo à exposição de vídeos em que pessoas caíam das mais diversas maneiras. A audiência ia a mil, arrancava gargalhadas dos expectadores, alguns chegavam a considerar o ápice do programa, a melhor parte.

Mas de mim, ele não arrancava sorrisos, pois só pensava o quanto elas deveriam se machucar, e isso não poderia ser motivo de alegria para ninguém. Só mais tarde eu própria ri de certas quedas e também das minhas, sem que jamais tenha compreendido por quê.

Era carnaval, primos, amigos e eu estávamos esfuziantes. Andávamos com os braços cheios de pulseiras luminosas e de todas as cores. Seria nosso primeiro carnaval descendo às ruas atrás de um trio elétrico. A própria cidade não suportou o peso da felicidade de seus habitantes e um apagão tomou conta de tudo.

Caminhávamos e dançávamos no breu, iluminados apenas pelas pulseiras, cuja luz não foi suficiente para me deixar entrever um toco de madeira fincado no chão. Meti-lhe a canela e caí longe. Eu e minhas pulseiras que foram parar a metros de distância de mim. É claro que todos riram em meio ao sangue que jorrava.

Levantei-me, a energia elétrica novamente deu luz à cidade e curti a festa durante toda a noite. Só no outro dia senti a dor do ferimento e fui tratá-lo. A cicatriz dessa queda permanece como para lembrar-me que em meio à alegria algo de inusitado pode acontecer e nos marcar para sempre.

Mas não me lembro de ter caído durante os treze anos que morei em Brasília. Em Brasília, não caí uma só vez. Era como aquelas árvores que "envergam, mas não quebram". De onde tirei tanta firmeza até hoje não sei. Mistério!

Mistério também é eu ter começado a cair novamente ao voltar à Bahia. Na casa de minha mãe levei um tombo na cozinha. Julguei-a culpada, porque o chão já estava brilhando de limpo e ela jogava água pela décima vez. Ela me acusou de volta: "É você quem não deveria andar de pés descalços pela casa." Não sei quem de fato teve culpa. Só sei que caí.

Recentemente passei alguns dias em Brasília e aproveitei para visitar os familiares em Goiânia. Na casa de minha tia levei um tombo na cozinha molhada e escorregadia. Estava com dois livros, um em cada mão, e não tinha onde me apoiar. Caí como quem mergulha. Rimos da cena depois. Eu me levantei, me arrumei e fui passear pela cidade. Ao ver as fotos do passeio, a tia comentou: "Quem diria que havia caído horas antes." Eu respondi: "Pois é tia. Quem vê meus closes, não vê minhas quedas." Gargalhamos muito.

Mas veja, minha passagem por Brasília se deu sem quedas. Em Goiânia, assim que cheguei fui arremessada no chão. Não entendo. Vou parafrasear Clarice Lispector: "Em Brasília, tenho resistência física, enquanto na Bahia e demais lugares sou meio mole, meio doce." Essa moleza tem sido meu álibi.

Agora mesmo escrevo com o joelho ferido e arranhado de mais uma queda. Começaram as festas juninas aqui pelas bandas do interior da Bahia. E eu que não ia na de ontem, resolvi de última hora comparecer - e com salto alto. Mas o salto nunca foi um problema, eu que dele me utilizo desde os quatorze anos de idade. Só que não fui feliz na escolha do modelo. Minto, fui feliz porque sorri e dancei durante toda a noite, invadida por um estado eufórico de felicidade que não dava sinais de futura tragédia.

Só que ao término da festa resolvi soltar a fivela que mantinha o pé firme na sandália. Despedi-me dos amigos e, sozinha, andava em direção ao carro. Eis que atravessando a rampa de paralelepípedo na saída do local da festa, o calçado vira, perco o equilíbrio do corpo e caio no chão na frente de todos. Parecia Maria Madalena ajoelhada em meio à multidão.

Um homem correu ao meu encontro para prestar auxílio, me estendeu a mão, de modo que consegui me levantar apoiada nele. Ainda consegui ver o espanto nos rostos de algumas pessoas ao meu redor. Mas para minha surpresa não tive vergonha de ter caído.

Perguntei ao mesmo homem que me ajudou a levantar se poderia me conduzir até o carro. Ele estendeu o braço e enquanto caminhávamos me perguntou se teria condições de dirigir. Disse que sim, que caíra por conta da sandália,e não havia bebido. Pensou que poderia estar bêbada. Percebi.

Cheguei à casa, tomei remédio para a dor que ameaçasse vir e dormi profundamente. Só no outro dia lavei e cuidei do ferimento. Deitei-me no sofá assim que acordei, abri um livro em que Clarice Lispector diz: "Eu mesma vivo me levantando e caindo de novo e me levantando." Coincidência? É e não é. Mas parece que a vida é esse eterno cair e levantar.

Levantei-me e estou aqui pensando no quão gentil foi o homem que me ajudou. Agiu com uma delicadeza que ainda agora me emociona. Disse-me coisas assim: "Isso acontece", "dos males o menor", "a senhora tem condições de dirigir?", "vou ajudá-la a tirar o carro desse lugar apertado para que não corra o risco de bater nos outros que estão em volta", não acreditando que eu não estivesse bêbada.

Ainda sinto a firmeza com que segurou meu braço e me conduziu para eu não cair de novo... Tudo isso porque na minha fraqueza lhe pedi ajuda e o fiz herói, grande e forte.















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