Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Brasília molhada de chuva e eu me ponho a escrever sobre Vidas Secas. Paro e penso na secura do sertão, palco da travessia da família de Fabiano, e até acho que estou sendo ofensiva com os personagens de Graciliano. Que eles me perdoem!

Fabiano, sua esposa sinhá Vitória, seus dois filhos, o mais velho e o mais novo, o papagaio e a cachorra Baleia estão fugindo da seca do sertão "com destino" ao sul.

O casal crê na possibilidade de uma vida melhor, num lugar onde os filhos possam entrar para a escola. É a esperança quem os guia. A fome e a sede os acompanham.

Neste palco, o papagaio é a primeira vítima. Num dia de escassez, como em muitos outros, o animal serve de alimento para a família. "Afinal, ele nem falava!" - desculpou-se sinhá Vitória. Devemos mesmo ser sacrificados por não cumprirmos nossas funções?

Num dia de muito cansaço, devido à longa caminhada, o filho mais velho cai no chão, inerte. Fabiano perde a paciência: "Anda, condenado do diabo". O filho não reage. "Anda, excomungado". O filho se mantém inerte.  O pai sente pena do filho. Carrega-o em seus braços. Fabiano tinha esses momentos de pura animalidade. Sabia-se bicho. Um bicho que por vezes se humanizava.

Durante o trajeto, a família se instala numa fazenda. A seca parece dar uma trégua. Tem comida, tem água, tem um pouco de dinheiro pago a menor pelo patrão. Sinhá Vitória sabe fazer conta. Alerta ao marido que ele está sendo passado para trás. Fabiano se revolta com a injustiça. Chega a questionar o patrão que o repreende com desaforo.  O sertanejo põe o rabo entre as pernas. Afinal, melhor pouco do que nada.

Fabiano vai ao povoado mais próximo comprar mantimentos. Chegando lá, acaba se entretendo numa partida de jogo. Um dos jogadores é um soldado (o soldado amarelo). Há um desentendimento entre eles. Fabiano mal sabe se defender diante da escassez de seu vocabulário. Até que xinga a mãe do soldado. Vai preso. Fabiano se revolta. Pensa em fazer besteira. Mas, tem a família. Sinhá Vitória deve estar preocupada e a sua espera.

Volta para casa. O filho mais novo admira o pai de longe e o tem por seu herói. O filho mais velho admira as palavras. Ao ouvir uma senhora pronunciar "inferno" quer saber o significado. Pergunta para a mãe que lhe recebe com xingamentos. Diz que deve ser algo ruim e que fosse perguntar ao pai. O pai também não lhe dá confiança. O filho mais velho não entendia como uma palavra tão bonita como inferno pudesse significar algo ruim. Podia-se notar que era uma vida seca não só de água, mas também de palavras, gestos e expressões.

Quem muito se expressa é a cachorra baleia. Mais humana que muita gente. Só faltava-lhe falar. Mas, como sentia. Mesmo com fome ficava quietinha no seu canto esperando a parte que lhe tocava - os ossos. Era quase uma parente. Se a família conhecesse a palavra amor e o seu significado, talvez dissesse que amava Baleia. Mas, Baleia os amava com olhar, paciência e resignação.

Baleia adoece. O casal tem medo de que a doença contamine os filhos. Fabiano decide matar Baleia. Os filhos sofrem. Sinhá Vitória se resigna. A vida dos filhos é mais importante. Até os bichos protegem suas crias. Por que Fabiano não? Baleia morre sonhando com um mundo de preás, pois ela passara muita fome junto à família.

Viva, Sinhá Vitória também tinha seu sonho. Queria uma cama para dormir. Quem sabe dormindo no aconchego conseguiria sonhar um pouco mais.

Num dia qualquer, o acaso ou o destino põe Fabiano novamente às caras com o soldado amarelo, o mesmo que outrora o prendera. Desarmado, o soldado treme, porque quem deve às vezes treme. Fabiano pensou em matá-lo. Mas quantos soldados amarelos o Estado haveria de ter? Quantos outros praticando abusos? Matar apenas um não resolveria, pensou Fabiano. Deixou que o soldado amarelo, agora de medo, fosse embora.

Cá, eu penso, quantos, indignados com um determinado governo, desejam o seu extermínio parecendo desconhecer que o mal não está apenas num indivíduo? Fabiano não era tão ingênuo. Bicho que é, sente. Homem que é, pensa.

A seca mais uma vez assola. Sem água, sem comida, sem papagaio, sem baleia e sem rumo a família põe-se a andar mais uma vez pelo sertão. Quem sabe a cidade estivesse próxima. Quem sabe a tão sonhada vida melhor, a escola dos filhos, a cama de Sinhá Vitória. "Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era".

"Andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos".

A esperança é que os guia. E eu torno a me lembrar, como quase sempre, o que Clarice Lispector chegou a dizer: "A esperança não tem olhos, é guiada pelas antenas". A família de Fabiano tinha as antenas ligadas. É preciso ter antenas ligadas para sobreviver. Esse instinto de sobrevivência acompanharia a família de Fabiano ainda que todos fossem uns bichos. E Fabiano sabia-se bicho. Fabiano era o bicho-homem.










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