Em fuga

Ir a Brasília me deixa suspensa e em êxtase. Como é bom retornar ao território que marcou meu corpo e minha alma de maneira intraduzível, tão inexprimível! Oh! Não saberei explicar. 

Não sei do mistério desse lugar que alargou a liberdade do ser que me habita e que me faz habitar todos os lugares. A amplidão de Brasília me abriu todas as portas. 

Em quais devo entrar?

Eis o meu destino. E para lá vou de coração aberto como quem vai ao encontro do homem por quem se apaixonou. Contando o tempo pelas batidas apressadas do peito. É assim que ponho os pés na capital. Em estado de encantamento e deslumbre.

Viajo durante à noite, chego de madrugada e, ao pisar, sempre com o direito, começa a peregrinação pelo templo que me santifica. O meu maior segredo é que sempre desejei a santificação. Quero a purificação sem o sofrimento dos santos. Quero ser pura de alegria. Alcançar o máximo de perfeição pelo prazer, não pela dor. Sorrindo e não chorando. Cantando e dançando à imagem e semelhança de um Deus que vibra.

Mas o medo me impede. Eu que tanto duelo com ele, que tantas vezes o enfrento só para mostra-lhe minha força. Às vezes, o medo corre de medo de mim. Outras, sou eu quem me rendo. 

Se ainda não me elevei à altura do meu desejo de ser maior do que sou é porque o medo me passa uma rasteira e me afundo em águas profundas que custam suor e sangue para emergir em nova coragem.

Entrei no ônibus alegre e corajosa, em expectativa. A viagem seria a melhor de todas. Em breve, respiraria o ar gélido da madrugada de Brasília. Chegaria e, em vez de ir direto para o apartamento, sentaria à mesa daquele ponto frente à rodoviária. 

Tomaria café bem quente, comeria pão de queijo quente, meu coração também aquecido respiraria, mais uma vez, o ar gélido de Brasília. Veria o dia nascer, o céu avermelhado, a lua desfilando, luz plena em meus olhos, o ardor do sol de Brasília penetrando. Eu parada, imóvel, pensando nas tantas coisas que ali vivi, nas que esqueci. Brasília penetrando.

A viagem estava boa e tranquila. Eu, invadida pelo sono profundo e delirante de remédio que impede enjoo e faz dormir. O sono era tanto que pouco antes do que se seguiria, o mundo poderia desabar e nada veria. Dormindo como quem morre, se tudo permanecesse naquela contínua serenidade era capaz de despertar quilômetros após a cidade dos meus sonhos.

Acordei com o barulho do movimento que se fazia bem ao redor. O ônibus se encontrava parado. Num esforço para abrir os olhos sonolentos, em dificuldade de ver na escuridão, percebi quatro homens entrarem em fila. Um deles se aprontava para sentar ao meu lado, na poltrona que até então permanecia vazia, do modo como anseio que sempre esteja.

De repente, despertei de uma vez como se todo o efeito do remédio desaparecesse ao sentir o perigo que me rondava. Ele era enorme, muito grande, muito gordo. Imenso como ninguém que tivesse aproximado de mim até então. Jamais vira homem daquele tamanho. Mexia e remexia em algo dentro da mochila. Meu Deus! Que tanto ele procura? Algo para me ameaçar calar dentro daquele canto escuro?

Quando se sentou, parte de seu corpo ocupou minha poltrona. Por mais que me encolhesse para sobrar espaço, o corpo dele continuava a roçar no meu. Quanto mais me encolhia, mais ele se alargava pelas lacunas que tentava deixar entre nós. 

Senti que estava desconfiado. Quando acendeu a luzinha acima da poltrona, nossos olhos se encontraram. Eu devia estar com cara de muito assustada, porque ele enfiou uma das mãos num saquinho de papel, de onde achei que poderia tirar algo que me feriria, e perguntou:

"Quer balinha?" 

Que alívio! Era apenas uma bala doce o que me oferecia. A última coisa que me passou pela cabeça receber daquele homem. Disse-lhe que não queria, ainda me tremendo de medo. 

Tive medo de permanecer ao seu lado. Medo de que fizesse algo comigo. Medo de cair no sono e ele me passar a mão, de ser invadida, ameaçada, violentada. Pensei que na escuridão intensificada pelo seu corpo a me tampar quase toda, qualquer movimento dele seria imperceptível aos demais passageiros. Estava sob perigo, imaginei.

Pedi-lhe licença. Ele se levantou para que eu passasse. Caminhei pelo corredor do ônibus em fuga. Ofegante, desci as escadas e fui ao espaço leito buscar amparo numa amiga que lá estava, me esconder daquele homem grande, grande. 

Ao lado dela, um lugar vago. Sentei-me. A única poltrona vazia como que à minha espera. Era um sinal dos céus, obra da Providência que a reservara para mim diante da ciência do que me ocorreria. 

Sempre fui dada a acreditar que algo me protege e acabo por ser protegida. Mas o resquício de um momento de escassa proteção me fez tremer de medo e pavor. Algo veio à tona. Queria encerrar a viagem, pular aquela etapa ameaçadora e chegar ao meu destino ou correr livre e sozinha pelo resto da estrada. Livre do medo da ideia de ser tocada por um estranho que me rondava.

De onde estava, pela transparência da porta, avistei quando apontou descendo às escadas do ônibus. Intuí que havia dado por minha falta e viera atrás de mim. Deixara minhas bolsas no local em que estava sentada ao seu lado e, como não havia voltado e o ônibus punha-se em movimento sem que retornasse, viera checar meu paradeiro. Ou queria se vingar por eu ter fugido?

Batia desesperadamente na porta do banheiro. Depois de muito insistir, sem que eu ressurgisse, foi atrás de uma mulher para que adentrasse o recinto. Imaginou que pudesse estar nua e exposta? 

E aí comecei a imaginar que aquele homem grande tinha lá suas delicadezas e reservas. Não abriu a porta, antes chamou uma mulher para que o fizesse. 

Percebi todo aquele movimento e disse para minha amiga: "Acho que ele está atrás de mim". O ônibus parou e consegui ver que o motorista entrara em cena. Todos estavam à minha procura. Se quisesse dar fim ao rebuliço e seguir viagem precisaria me mostrar e dizer: "Estou aqui".

Frente ao homem grande, ainda cheia de medo, lhe perguntei: "Está atrás de mim?" Ele anunciou: "Ela está aqui.". 

"Eu vim ficar com minha amiga que está no leito".

Aliviado, apenas respondeu: "Graças a Deus!", e subiu as escadas  para, sozinho, ocupar o seu e o meu ex-lugar.

E se ele vir atrás de mim para tirar satisfações? Comecei a ser tomada por pensamentos de que poderia querer se vingar por tê-lo deixado. 

Ele, que entrara tão desconfiando, se ajeitando e ajeitando as coisas na mochila antes que pudesse se sentar ao meu lado. Tão grande e gordo, como que pedindo licença para existir. Ciente de todo o espaço que ocuparia, me comprimiria. 

E, como uma criança, que já fora alvo de risada e exclusão, que ficara muitas vezes de fora, que para tentar a mínima aproximação com o coleguinha, tivesse de carregar um pacote de doces: "Quer uma balinha?" E mesmo assim tive medo como se fosse um inimigo a ameaçar invadir-me toda. 

De repente, o jogo virou. Eu quem me tornara a vilã. Teria ferido aquele homem ao fugir? Teria lhe despertado lembranças de outras distâncias tomadas? De um tempo em que não quiseram brincar com ele por ser do tamanho que era? 

Passei a me culpar. Deveria ter permanecido ao seu lado, suportado o seu peso, controlado o meu medo? Deveria ter sentido medo? De alguma forma machuquei o coração do homem? Quantos corações feri?

Jamais saberei o que se passou dentro dele. Só sei do meu interior. Um medo de outras eras, de coisas sabidas e esquecidas, tomou posse de mim por inteiro. Perdi a razão, a capacidade de pensar e de agir com amor diante daquele que talvez precisasse apenas que eu ficasse ao seu lado. Sem dizer um palavra, apenas ficasse. Não fugisse, mas suportasse.

Eu, que tantas vezes evito o outro por medo de amar e de ser amada, sei que o que nos impede o amor não é o ódio. O que nos impede o amor é o medo. 

É sempre diante da promessa do amor que me tremo toda. 

É sempre do amor que tenho fugido.






 







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