Quem sabe!?
Numa entrevista, a escritora Raquel de Queiroz narra esse episódio: certa vez, um amigo, entusiasmado com os murmúrios em torno da Psicanálise, disse a ela para que se consultasse com um psicanalista, se quisesse resolver todos os seus traumas. Raquel, em tom risonho, respondeu-lhe:
"Mas se eu me curar de todos os meus traumas, como vou continuar a escrever?"
Perguntei a um psicanalista se ele acredita que a Psicanálise pode levar as pessoas a se curarem. "Curar para quê? Quanto de conteúdo recalcado tem na sua biblioteca? E nos livros que você escreve?"
Gargalhadas à parte, ato falho em seguida: "Mas eu sou puro recalque!" - exclamei.
E quem não é que me atire a primeira pedra.
Todos temos recalque no inconsciente. Aquelas coisas que não elaboramos muito bem, conteúdos traumáticos que preferimos manter às escondidas, mas que insistem em retornar de um modo ou de outro.
O processo analítico nos incita a lançar luz ao inconsciente, a regredir ao passado, em especial à infância, a fim de elaborarmos os acontecimentos e a interpretação que fizemos a respeito deles, diante da falta de mecanismos psíquicos para compreendê-los à época em que ocorreram.
Podemos reelaborar e ressignificar todas as narrativas que contamos para nós mesmos, elucidar situações que permaneciam obscuras, revelar um trauma que insistíamos em manter encoberto, entender que as coisas podem não ter ocorrido com a dimensão e o sentido que demos a elas.
O percurso analítico nos induz a desenvolver a inteligência e a criar significados muito mais sofisticados e complexos a respeito de nós mesmos. Afinal, ser humano nunca foi tão simples como alguns pretendem supor ao criar conceitos e regras para aplicação indistinta.
Mas a análise não apaga a memória. E mesmo quando reescrevemos uma história, a anterior não é de todo lançada ao esquecimento. É como quando escrevemos a lápis numa folha de papel, apagamos tudo que foi escrito para reescrever na mesma folha e percebemos que as marcas do que foi apagado ainda permanecem ali.
E foi bem assim, ao incitar que apagassem o inapagável, que levei um baita zero da professora de inglês. O colega e eu trocamos nossas provas. O combinado era de que eu escreveria as respostas certas a lápis na prova dele e, logo após a nova troca, ele apagaria minhas letras e reescreveria por cima. Ocorre que o plano falhou e os meus registros deixaram vestígios do "crime".
A professora foi imperdoável. Sequer oportunizou minha defesa. Dei de ombros e, na minha petulância de menina, afirmei que conseguiria a média para aprovação final, mesmo após esse zero que nada me acrescentaria se não fosse a possibilidade de contar essa história.
Acontece que a análise realmente não nos cura por completo. E como eu seria se fosse remediada e curada de meus traumas? Escreveria? Um amigo, ao me ler, fez essa provocação: "Engraçado, algumas coisas que você escreve carrega um certo drama que não identifico em nossa convivência. Será que essa dramatização toda não seria uma "desculpa" para escrever? Um certo charme de quem escreve!?" Quem quiser saber o desenlace dessa nossa conversa, vá ao texto "Tentativa", em que fingi tentar me explicar, já que a atuação também é um dos dons de quem escreve.
E foi aí que entrei numa "onda" de pensar de quais coisas não quero me curar. Pois bem, não quero me curar de amar ao meu modo, muito menos da ideia estruturante da impossibilidade do amor. O amor que se realiza pode assim ser chamado? Ou em toda realização amorosa, o amor escapa por que o que se consuma também se consome?
Todo o mundo diz do amor. Mas o que ele é? Quem garante que ele é o que dizem ser? E se todo amor for inventado, como diz Cazuza? Ou será melhor não saber para que se abra a possibilidade de novas formas de amar? Ou será melhor ficar com a dúvida daquela canção: "Quem sabe isso quer dizer amor?"
Quem sabe!?
Meu modo é pela não realização plena do amor. A comunhão possível não pode ser possível. Se o amor se render a mim, o espaço vazio, causa de meus movimentos, será preenchido. Sem movimento, inércia. E a inércia não permite que eu escreva, percorra, deslumbre, queira, sonhe, viva. Ame!
Não. Definitivamente, não quero me curar do amor. E se é verdade que "o nosso amor a gente inventa", eu vou ter de pagar a conta do analista pra nunca mais falarmos sobre isso.
O amor é a minha invenção mais bonita. E sabe de uma coisa?
É dela que vou continuar a escrever e a viver.
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