O que o vestido rosa tem a ver com essa história?

Ao meio dia, a ardência do sol estalava a cidade de pedra, gente e rio. A fome ameaçava, não tanta fome assim que não pudesse esperar enquanto experimentava o vestido que avistei na vitrine, ao passar de carro pelas ruas. Era rosa, e mesmo com tantos vestidos rosas à espera no guarda-roupa, queria aquele que não tinha, mas que também era rosa. 

Não tardei a mudar de ideia logo que vi o de cor bege, depois o de cor verde. Já nem me lembrava do rosa e, bem sei, se tivesse num dia propenso a devaneios, teria levado os três. Só levei o bege

No momento em que sacava o celular da bolsa para pagar o vestido, eis que entra um bêbado na loja. Fazia barulho e pedia dinheiro: dois reais para, segundo ele, comer.

Há tempos, transito pelo mundo sem dinheiro em espécie. Perguntei à atendente se poderia cobrar dez reais a mais de minha compra e entregar o excedente ao homem. Ela assentiu e assim o fez. O homem limpou uma das mãos na roupa, como se a sujeira lhe fosse impregnada, e a estendeu em minha direção emanando palavras de agradecimento e pedindo a Deus que multiplicasse todos os meus bens. E me acontece, como por milagre, que todas as vezes em que dou algo a alguém é como se saísse aumentada de minhas posses.

Em seguida, disse com alegria doída que, finalmente, comeria alguma coisa, pois a fome lhe maltratava. “Moça, eu estou cansado dessa vida, estou bebendo muito e quando peço um prato de comida na rua, as pessoas me xingam e dizem que devo trabalhar. Mas não consigo sair dessa vida.”

Pergunto-lhe o que está se passando. “É que não tenho ninguém. Estou largado, sozinho. E só sei beber. Tem gente da minha família que é dono de restaurante e eu ando pelas ruas pedindo o que comer.”

Tratei de lhe dizer que o compreendia, mas que a qualquer momento ele poderia mudar de vida e alterar a ordem das coisas. Meu Deus!, bem sei que não é tão simples assim. Mas que diria além disso?

“Pois é moça, uma amiga minha me disse, hoje, a mesma coisa.”

“Então, se duas pessoas falaram para você a mesma coisa, num mesmo dia, não pode ser coincidência.”

Acrescentei:

“Mas você pode fazer outra coisa, moço: vá ao Santíssimo, lá na Gruta do Bom Jesus da Lapa, se ajoelhe e peça a Deus que reabilite suas forças e lhe dê coragem para sair dessa.”

“Eu vou é pedir Ele pra me internar.”

“Pois que seja! Mas vá.” – arrematei.

Saí de lá pensativa, refletindo sobre a fraqueza humana, mas sobretudo a fragilidade do homem, que é também o meu ponto fraco, a razão porque sou condescendente com suas falhas e erros. A razão por não querer enganá-los nem os subjugar ao poder ameaçador e de mando que toda mulher parece portar. E daí porque me utilizo de uma insinuação de Hélène Cixous no sentido de que minha relação com os homens sempre foi de proteger, cuidar e amar. Nunca de capturar. Mesmo quando amo mal. Oh! Mesmo quando...

Aquele homem não sabia lidar com as perdas e os revezes da vida, por isso bebia. É essa fraqueza estrutural, elementar e emocional que faz que o humano-homem se drogue, violente, se desespere e mate. 

Não pense que quero justificar ou normatizar abusos e crimes. Que pretendo que tais atos ocorram à revelia da lei e à margem da punição cabível. É que essa fragilidade deve ser pensada, compreendida, formulada, não para que seja consentida, mas transformada. Eu, que há muito, me intitulei defensora das causas íntimas dos homens. Essa intimidade que tanto me dói, perturba, exalta, aniquila e os atrai a mim.

Outro dia, estava no supermercado distraída com a compra de alimentos para cozinhar, para quem? Para os homens. Sempre eles.  Escuto uma voz a me chamar: “Mulher, ô mulher!” Paro para ouvi-lo: “Pois não!”

“A senhora pode pagar ... (falou o nome do que queria)”.

“Não entendi, moço.”

Repetiu e, de novo, não entendi. Encontrei a solução:

“Vá lá e pegue o que você quer.”

Vem até o corredor ao meu encontro e me entrega o pacote com frango. Assim que o passa às minhas mãos, começa a chorar desesperadamente. Percebo que está bêbado, e quero saber de sua dor:

“Por que você está chorando, moço?”

Outro homem, ao lado, atravessa: “Também não estou entendendo esse choro dele. Deve estar emocionado.”

Enfim, revela: “É que não tenho mais minha mãe.” De repente, o Homem se faz menino e sofre a perda do amor primeiro. Aquele que diz de todos os outros amores. Aquele que, ausente, nada se faz e tudo se desfaz.

Um nó fechou minha garganta. Nada tinha a dizer, nem mesmo para que se contivesse, não chorasse. O sofrimento precisava ser expressado, vivido e revivido. O vício era o caminho para anestesiar a dor? Sempre é. Sempre. É.

Enquanto passava as compras no caixa, ele se ia sem levar o que havia me pedido. Esquecido de si e de tudo o mais. Pedi a alguém que corresse em sua direção e lhe entregasse o pacote. Segundo me disseram, perguntou: “Quem mandou me entregar isso?”

Não se lembrava de mais nada. Jamais saberá de mim. No entanto, eu soube dele: que era um homem, que estava bêbado, que me pediu um frango, que perdera a mãe, que chorava no meio do supermercado e que, quando pedia algo para comer, era outras fomes que afloravam em seu coração de menino.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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