Coisas de Brasília

O sol estava claríssimo e o verde das plantas ao redor convidava-me a dar uma volta, rever o caminho por demais conhecido sob nova ótica: a da revisitação. Menos de dois anos longe, fisicamente distante, mas na memória a ela voltava todos os dias. Tanto que um colega, ao me perguntar sobre quem não conseguiria me imaginar viver sem, ele mesmo pôs-se a responder: acho que sua paixão é Brasília.

Sim, sou movida pelas minhas obsessões.

Mas Brasília é apenas uma dentre tantas, e tenho muitas, infindáveis, a ponto de pensar que uma vida jamais seria suficiente para viver e experienciar ilimitadamente todas elas, como bem gostaria.

Dei a volta ao Parque e estendi a caminhada pelo Planalto Central, enquanto ouvia repetidamente "Coisas de Brasília", de Oswaldo Montenegro. Abria os braços, sozinha como quem voa, livre e leve como quem levita e não deixa rastros pelo chão. 

 

Caminhando e cantarolando "é que era frio e era claro como a seca de Brasília, eu já não sei se amava ou sonhava. Isso eu sei", passava frente ao Memorial JK, que visito e revisito para sentir a emoção da história, da coragem e da bravura de um homem que decidiu avançar 50 anos em 5. 

Onde estão os que não se furtam de empreender coisas grandiosas em pouco tempo e não se curvam ou desanimam diante dos que dizem: 

"É impossível!" 

"As coisas acontecem devagar."

"Sempre foi assim."

Por onde andam aqueles que não se resignam?

"A nossa solidão é a do planeta, é quase a mesma, eu sei", o compositor tece a condição humana ao tempo em que a compara à capital, cujo horizonte marca o contraste de nossa pequenez e falta de correspondência. Ciente da dureza de uma cidade de secura e concreto que nos põe à prova: “Minha canção é a loucura como a alma de Brasília. Contorna, adoça, põe na boca o fel da louca ilha, eu sei. É quase branca a minha angústia, eu não te amo porque amei. E quanto te encontrar vou perguntar o que valeu.”

Mesmo assim voltei para viver com mais aceitação o humano que me é próprio, como quem apreende no fundo de si a verdade de que "a condição não se cura, mas o medo da condição é curável". É preciso curar-se de si próprio, do que tanto nos aliena e acorrenta. É preciso não deixar que o medo nos paralise, apesar do medo.

O sol continuava a brilhar tanto ou mais, tudo fluía com ou sem a minha presença, à semelhança da reflexão de Clarice Lispector, “é bom que as coisas não dependam de mim para existir”. Fico mais tranquila, porque com ou sem mim o mundo continua. Ele é antes e depois e continuará sendo. Serei dispensável quando não mais viver. Por isso, vivo.

Cheguei a Brasília. No shopping, em direção ao salão de beleza, um homem me parou a fim de me perguntar a localização de algum lugar. Aproveitou-se para fazer um elogio e convidou-me para tomar um café. Disse-lhe que não podia, que estava com horário agendado para fazer as sobrancelhas. Perguntou-me quanto tempo demoraria. "Não sei." Ao que ele respondeu: "Posso te esperar pelo tempo que for preciso."

Hein!?

Indicou com a mão onde me esperaria. Prometi-lhe que ao sair do salão iria até ele. Ao ouvir aquele sotaque, fiquei interessada em explorar um mundo que não conhecia. Movida por pura curiosidade resolvi não perder a chance de saber sobre coisas que só um estrangeiro poderia me revelar.

O que esperar de um brasileiro já sabia de cor, desde o nascimento. Mas como seria a conversa com um homem de outro país? O que ele me ofereceria de novidade? O quanto sairia mais sabedora após aquele encontro?

Após quase duas horas, saí do salão e fui ter com ele. Esperava-me e, ao me cumprimentar, disse: "Achei que não viria". Mas eu não prometi que viria?

Onde mora? Em que trabalha? De que gosta? Fez perguntas assim e pediu-me que falasse mais ao meu respeito. Era italiano, disse coisas de sua profissão, que escrevia num jornal sobre política e economia, que gostava do Brasil, em especial por causa das mulheres que, segundo ele, são mais atraentes. Aproveitou-se para tecer mais elogios e dizer palavras sobre meus olhos que não entendi muito bem. Algo no sentido de que queria mergulhar neles como os marinheiros que se afundavam no mar com o chamado das sereias. 

E arrematou com uma proposta: "Quer ir para o hotel comigo?" Recusei de imediato. Ele insistiu tantas vezes quantas neguei. Ofereceu-me um presente: "o que você quer ganhar? Escolha." Respondi-lhe que não queria nada e que não precisava de nada. Que realmente estava ali apenas pela conversa.

De repente percebi que não estava diante do novo. Não havia diferença entre estrangeiros e brasileiros. Era um homem como os outros. Queria o que os homens costumam querer. Eram iguais em intenções e desejos. Mas eu esperava o que mesmo? (não sei) pois qualquer coisa que ele me apresentasse já estaria inscrita no catálogo limitado do que um ser pode querer do outro.

Despedimo-nos, era noite, e fiquei pensativa enquanto dirigia para casa. O homem é homem em qualquer lugar que esteja. E me indagava: mas que tipo de coisas ou de propostas ele poderia fazer-me para que não o julgasse comum? 

E o que eu poderia dar a um homem estrangeiro diferente do que as outras mulheres do mundo todo lhe dão?

Diante do homem, sou sua igual. E, provavelmente, a ele também não pude acrescentar mais do que costuma receber.

Acontece que essa minha curiosidade de escritora me faz descobrir coisas tão óbvias como essa de que não há brasileiros e estrangeiros. Há apenas o humano em cada um de nós.


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