Vida vidinha
A escritora Adélia Prado, ao ser questionada sobre o que pensa a respeito de ser chamada de poeta do cotidiano, faz uma reflexão: Mas nós só temos o cotidiano. O que mais podemos ter além de nossa vida vidinha?
Pois ela tem razão. De que mais pode ser feita a vida além dos pequenos detalhes diários que preenchem e dá sentido à existência?
Abrir os olhos ao acordar, sentir o cheiro do café, arrumar-se enquanto fita o espelho, o sol despontando na manhã, o vento acariciando o rosto. Levar os filhos à escola, beijar-lhes o rosto, dar-lhes o abraço apertado. O olhar de alguém que nos fita com amor ou admiração.
A gentileza do garçom que nos serve, as trocas de palavras, as discussões afáveis ou calorosas. O aroma do tempero das panelas que fervem ao fogo. Os conflitos que nos tira o sono ou a paz. Os afetos de quem nos afetam. A espera de quem nos desespera. A oração. A graça recebida.
A compra no supermercado, a geladeira cheia, a faxina, a louça suja, o que vamos comer no jantar. As panelas no fogão. O fechar das cortinas. Dormir para no dia seguinte nos repetir.
A vida é ordinária. É comum.
O bolo de chocolate feito às próprias mãos para agradar o paladar e o coração do amado. O bilhete escrito de próprio punho com palavras simples e largueza dos sentimentos. Os momentos de riso, de lágrimas, a conversa com a atendente.
O acolhimento de quem nunca mais veremos. O morador de rua a quem escutamos e damos um prato de alimento, ouvidos que escutam o ruído próprio, do outro, do mundo. A comida da mãe. O abraço da avó. A voz do sobrinho dizendo que ama e que está com saudade, o olhar do filho que pede ou exige.
O lençol perfumado, a casa limpa, a cama macia, despertar e principiar um novo dia. A vida ordinária, cíclica, em círculos, como os astros, como nós, como tudo o mais. O extraordinário é a exceção. Vida, repetição.
A frase de Clarice Lispector "Meu cotidiano é muito enfeitado" remete à necessidade de fazer de cada dia o grande dia? É preciso enfeitar os dias e não esperar que a vida aconteça, nos alegre e nos anime somente quando "o grande" acontecimento acontecer.
A atriz Fernanda Torres reflete: "Hoje em dia, todo mundo vive para o grande momento, já percebeu? Parece que a gente só existe na hora de tirar self. Ah, o casamento. O show da banda. A viagem incrível, mas pensa bem, isso é apenas 1% da vida e olhe lá. E os outros 99? A vida existe é neles. É no café da manhã, é na hora que seu filho ri, é na fila quando você está esperando para entrar no show. Viver só para o grande momento, eu acho que deve ser cansativo. E se você começar a prestar atenção na sua rotina vai perceber que a vida é toda hora. O 1% é bom, mas os outros 99 talvez seja mais."
É isso que a mineira Adélia Prado descreve e inscreve em seus poemas. O fogão aceso, a casa amarela, o amor ao desconhecido Jhonatan, o trem de ferro que passa, o sexo entre os que se querem, o roçar de braços, a briga no beco, a saudade da mãe, a mulher desdobrável, a morte, a prece, as minas gerais.
Vida vidinha é só o que temos mesmo e, se não nos atentarmos, a deixaremos escorrer e escapar entre os nossos frágeis dedos.
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