Restos do tempo
Quando virou as costas e bateu a porta, sentiu que lhe daria tudo. Nada havia a negar: o que pedisse ou não pedisse em silêncio mudo lhe seria entregue sem demora. Não era a perdição, enfim... Era o dar-se à medida do querer daquele homem que tanto podia sem ao menos saber que podia. Inocente, indecente, um menino, um homem dentro do corpo alto e forte. A ele, tudo.
Aquele seu jeito de deixar as sandálias no canto da sala e pisar no meu mundo de pés nus. E de olhar-me com olhos apertados e miúdos a querer mais prazer. A maneira tão simples de dizer que está com fome e, sim, quer comer o que quer que tivesse para saciá-lo. A simplicidade de homem que recebe com as duas mãos e não faz rodeios para dizer o que quer.
Eu o vi e o quis com a intensidade de uma mulher que apenas ver e quer. Mas a cabeça estava tão longe de tudo que só tive tempo de desejar e soltar. E quando ele veio, quando o chamei e ele se voltou a mim, não mais pude dizer não. Era a entrega, enfim.
Recebia-o disposta a satisfazer-lhe as vontades mais loucas que passaram a também ser minhas. Aquele sentimento crescia por todos os lados, eu rendida, sem conseguir me desviar do seu chamado, de suas exigências, suas necessidades. Os olhos à procura dele, os pensamentos repousados nele, o corpo querendo ele, tudo era dele.
Pedia tão pouco, quase nada, e eu querendo dar-lhe tudo. Feita de urgência e transbordamento que precisava ser desviado como se desvia o curso de um rio. Não havia espaço, nem tempo, nem lugar para nós dois. Nossos horários não combinavam, nossas vidas não se encontravam, nossas direções não convergiam.
E ele calado, sem esboçar palavras, pelo menos nenhuma daquelas que eu mais queria ouvir. Nenhum pedido. Nenhuma promessa. Nada.
E eu me fui como quem quer se desvencilhar e recolhi o sentimento que não encontrou eco nem lugar. Só minutos rápidos, encontros rápidos. Tudo em silêncio para não fazer barulho, não despertar ninguém. Tudo sussurrado. Ninguém saber de nada. Nos intervalos, no expediente, na semana, hora marcada, começo e fim cronometrados. Tudo rápido, sem demora, sem delongas, sem "milongas".
Todos os seus espaços estavam ocupados. Não havia nada para mim.
Só os restos do tempo.
Então, só restou ir embora.
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