O casaco preto
Do outro lado, enquanto passeava, avistei a peça. Uma blusa de manga longa, cor clara e modelo daqueles que a gente olha e logo pensa: parece comigo ou combina comigo.
Resolvi me dirigir à loja, tocar a roupa para sentir o tecido, experimentá-la a fim de verificar se, no corpo, cairia tão bem quanto nos olhos.
Eis que uma moça me recebe à porta antes mesmo de eu colocar os pés no recinto. Recebe com sorriso largo, tom de voz vibrante, cabelos ao ombro encaracolados, claros, esvoaçantes e elogios que desarmam até aqueles que parecem imunes a eles.
Conversa como se me conhecesse há séculos, como se fôssemos íntimas, como se o fato de ambas serem mulheres dispensasse todas as formalidades e distâncias imaginadas.
Antes de provar a peça, pede que me sente na poltrona, entrega-me um copo com água e diz para aguardá-la enquanto prepara um capuccino servido com biscoitos.
Diz que gostou da minha roupa, dos meus sapatos, da forma como ajeito as pernas ao sentar-me, que sou sua cliente linda... Detalhe: não a conhecia até aquele momento nem havia comprado nada naquela loja. Mas à medida que fala, sinto-me cada vez mais à vontade para espalhar-me de corpo e de alma por todos os espaços do lugar.
A conversa flui enquanto bebo e como, sentindo-me cada vez mais confortável e acolhida. Cada vez mais perdoada das coisas que nem sei.
Então, provo a peça e acho que não me caiu bem. Ela se prontifica a me mostrar outra, de cor e modelo bem diversos daquela que me conduzira até ali.
Era um casaco preto clássico e acinturado como se tivesse sido feito ao meu gosto e à minha medida.
Já agasalhada nele, consulto o preço e falo comigo mesma: jamais pagaria esse valor.
Ainda assim, confesso que o adorei, que ficou bem ajustado e a moça se aproveita para sentenciar que super combinou com a roupa que eu já estava vestida.
A conversa continuou rolando solta, sentei-me novamente, o casaco preto me acobertando, me aquecendo, me justificando, me convencendo, até vir à mente a resolução de outrora, a decisão de que não o compraria. Era muito dinheiro para uma única roupa.
Ocorre que a simpatia pela moça foi à primeira vista e ao primeiro sorriso. Sei que gostei dela de cara, de graça e de primeira. Gostei dela antes de gostar do casaco que a ela me remete.
E quando dei por mim, estava de frente ao caixa, entregando o dinheiro sem remorso e sem qualquer intenção de desvestir-me e devolvê-lo à loja.
Não era possível que estivesse pagando aquele preço. Era possível sim, tanto que paguei. Mas onde estava com a cabeça? Agia com a cabeça?
Dias depois, olho-o pendurado no closet e me questiono: Quanto vale um casaco preto?
Não sei se as coisas valem por si ou se pelo sentido e significado que representam para nós.
O casaco e o preço pago por ele valeram o encanto, a conversa, as risadas, o acolhimento, o ambiente agradável, os elogios, a troca de experiências, os gostares, a porta aberta para que outros encontros aconteçam.
Quando volto lá, a recepção é a mesma, a ponto de, certa vez, depois de um dia cansativo, perceber que, na verdade, não queria comprar nada, apenas passar por aquela sessão de mimos, carinho e gentilezas. Tomar aquele capuccino doce e quente. Quase uma terapia de abraços, sorrisos, afetos e elogios recíprocos.
Bem diz Clarice Lispector: "Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior." ou ainda "Uma pessoa é medida pelo tamanho da sua carência."
E cada vez mais percebo que carecemos de muitas coisas que justificam o preço só pelo valor que elas representam para nós.
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