Justa causa
Não pense você que é fácil trabalhar apontando os erros alheios. Eu, que pensei um dia ser juíza, e desisti logo em seguida, sob o argumento de que não nasci para julgar a ninguém (a boa samaritana) acabei parando num lugar em que tudo que mais faço é dizer: fulano praticou o fato x, agrediu frontalmente o artigo tal da legislação y, sendo assim deve ser punido com a sanção z.
E o pior de tudo é que eu gosto, sem saber exatamente qual parte de mim goza ao exercer essa atividade. Talvez, arrisco dizer, talvez goza a juíza que não ousei ser.
Mas, antes que haja mal-entendidos, devo deixar bem claro que não é o resultado punitivo que me entusiasma, e sim a construção de um raciocínio que justificará a decisão de determinada autoridade. A autoridade manda (quem sou eu para dizer o contrário?) no entanto, manda alicerçada num entendimento pensado e construído por mim.
Só que mesmo gostando de fazer o que faço, o desconforto me acompanha. É que sou por demais humana e por demais consciente da falibilidade humana. É que sou toda errada e não faço questão de andar nos trilhos. Vivo a caçar maneiras de exercitar meus erros a ponto de chegar à seguinte reflexão: será que preciso dizer aos outros sobre a necessidade de proceder dentro dos limites da lei para que eu mesma não os ultrapasse?
Realmente, não sei. No entanto, me percebo tentando ajustar-me aos contornos das enunciações que emito a fim de que os outros se ajustem. Afinal, se eu própria não agir conforme minhas palavras e sentenças como vou convencer os demais acerca do que digo? E mais: como convencer a mim?
Dizer de penalidades é tarefa árdua, ainda mais quando há o envolvimento dos afetos. Você já ouviu falar que o ambiente de trabalho é um dos mais erotizados que existem? É que as pessoas passam muito tempo juntas, dividem interesses e dramas comuns, se cruzam e se olham, entram em conflito, têm divergências, desabafam umas com as outras, fazem alianças e jogam os poderosos jogos de poder. Almoço no meio do expediente. Cabelos molhados. Happy hour. Relações. Amizade. Amor. Casamento. Amante. Con-fusão. Um caldeirão de emoções e sentimentos. Todos juntos e misturados.
Impossível é deixar as vestes de gente ao pisar os pés no trabalho. "Agora sou apenas o chefe do setor administrativo, deixei minha humanidade da porta pra fora e nem tenho olhos para ver aquela bela mulher sobre a qual todos estão de olho." Ou: "gostei dele, mas não vou permitir que se aproxime porque notei que é comprometido".
Ocorre que não há lei ou moral que impeça as pessoas de se aproximarem ou se gostarem. Muito menos de se tocarem. O Tribunal Universal Freudiano da Sexualidade é unânime quanto a isso, eis a jurisprudência consolidada: "Argumentos não têm valia alguma contra as paixões humanas".
E não tem mesmo. Ah! Bem sei!
Mas o que se pretende inibir e coibir é que o afeto seja usado com o fim de favorecer outrem. Elevar a possível amante ao patamar de Diretora-Geral do Departamento Jurídico sem motivo justificável que não seja tão somente a paixão. Legítimo? Por demais. "O amor supre as falhas", diz Clarice Lispector. Contudo, em termos legais, é proibido. E porque proibido... nem preciso dizer. É proibido e ponto.
Só sei que "eu amei e amei ai de mim muito mais do que devia amar..." Como não? Nossas conversas, o toque no braço que descia para os dedos das mãos... Sete e meia da manhã, o carro no estacionamento, eu que só chegava às nove, e querendo trabalhar aos sábados, domingos e feriados... todos os dias até o fim dos meus dias.
Aquela vontade de potência para promovê-lo ao mais alto posto. Diretor dos Céus, da Terra, da Companhia Energética do Mundo. Se pudesse, o que ele desejasse, eu o daria. Danem-se as leis! Quem pode contra as paixões humanas? Comigo-ninguém-pode.
Apresentada a carta de demissão, um esboço de sorriso nos lábios enquanto diz no fundo de si: pagaria o preço que fosse para fazê-lo Presidente. Fiz.
Demitida, sim, mas demitida com orgulho e por justa causa.
Eita, parabéns Filha 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻❤️
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