Mas pra que viver fingindo se eu não posso enganar meu coração?

 À época em que Freud publicou o livro "A interpretação dos sonhos", que inaugurou formalmente o movimento psicanalítico, vivíamos sob os efeitos do desenvolvimento científico e tecnológico. Sem negar a existência de resquícios do misticismo, do cristianismo e das religiões, pretendia-se explicar o mundo, suas causas e efeitos, tão somente levando-se em conta a ciência e a razão.

Também buscava-se justificar as doenças a partir de causas físicas ou corporais, como se corpo e alma fossem distintos e não se comunicassem entre si, ainda sob a influência de Descartes para quem havia separação entre as instâncias humanas orgânica e psíquica.

Para um mundo que se quer fazer entender a partir de princípios lógicos, nada pode parecer tão ilógico quanto as razões e motivações do inconsciente. 

Estruturado como linguagem, segundo o psicanalista Jacques Lacan, o inconsciente não obedece à lógica aristotélica baseada no princípio da identidade, que diz que um ser é sempre idêntico a si mesmo, ou seja, Ana é Ana; no princípio da não contradição, o qual dispõe que é impossível ser e não ser ao mesmo tempo, a exemplo, é impossível que Ana seja Ana e não seja Ana; e no princípio do terceiro excluído, em cujo sentido carrega-se a ideia de que nas proposições, sujeito e predicado, só existem duas opções, ou é afirmativa ou negativa. Assim: Ana é escritora ou Ana não é escritora, e não existiria terceira possibilidade.

Lógica é o campo da Filosofia que estuda a estrutura e as regras dos enunciados e suas argumentações. Para Aristóteles, qualquer conhecimento que se pretenda verdadeiro tem de respeitar os princípios lógicos, fundamentados na razão.

Ocorre que, ao trazer à baila o inconsciente, este, conforme Freud nos mostrou, não obedece à lógica racional. Daí resulta a frase do pai da Psicanálise: "Não somos senhores em nossa própria casa." 

Somos seres divididos, em constante conflito entre o que queremos, desejamos e estamos impulsionados a fazer e o que nos é permitido pelos outros e pelas normas, sanções e ideais, os quais nos são introjetados desde o momento em que nascemos. 

No meio dessa "briga", encontra-se o ego ou eu, tentando se safar como pode, por intermédio de mecanismos de defesa, à custa de sintomas, contradições, dúvidas, medos, recalques e adoecimentos como ansiedade, depressão e tantos outros.

Segundo Freud, no inconsciente coexistem desejos e impulsos sem que um influencie ou contradiga o outro. Podemos desejar vários objetos, sem que o fato de gostar de saborear amora anule o fato de gostar de sentir a suculência da maçã. Sem que o fato de amar Pedro anule o desejo de eu também querer passar uma noite com João.

Para o inconsciente, não existe contradição ou negação e "quando dois impulsos contrários são investidos simultaneamente, ocorre uma espécie de união, onde nenhum deles se anula, mas cede uma parte de si mesmo, eles se combinam para formar uma finalidade intermediária, um meio termo."

Destaca-se, quanto aos processos do inconsciente,  a condensação, quando se tem algo com vários significados se reunindo em um único símbolo. O contrário seria o deslocamento, um único símbolo abrindo-se para várias associações significativas.

Ainda, sobre esses processos, temos que são atemporais, ou seja, não se modificam com a passagem do tempo e não têm qualquer referência ao tempo. Daí porque ainda somos atravessados pelos acontecimentos da infância. Também não se prende aos fatos em si, pois é regido pelo princípio do prazer/desprazer e não pelo princípio da realidade. Além de substituir a realidade externa pela interna ou psíquica.

E como o inconsciente se manifesta, se exterioriza? Sintomas, chistes, lapsos e atos falhos são algumas dessas formas. Mas também por aquilo que não é dito no dito, ou melhor, pelas entrelinhas. De forma consciente ou não, de alguma maneira ele se põe a revelar. Diz Freud: "Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos."

É a partir dessa frase que proponho a análise da canção "Evidências", de José Augusto e Paulo Sérgio Valle, escrita em 1989:

Quando digo que deixei de te amar é porque eu te amo/ Quando digo que não quero mais você é porque eu te quero.

Aqui, tem-se um dizer que quer dizer o contrário do que se diz tendo em vista "o medo de te dar meu coração e confessar que eu estou em suas mãos". Portanto, digo o contrário do que sinto por temer que o meu sentimento, a minha verdade não seja suportada ou aceita por aquele que me ouve. Pois, a depender da reação daquele que ouve, posso perdê-lo e "não posso imaginar o que vai ser de mim se eu te perder um dia."

Eu me afasto e me defendo de você, mas depois me entrego/Faço tipo, falo coisas que eu não sou, mas depois eu nego - tem-se o conflito interno entre o que quero intimamente e o que estou disposto a revelar. Além da tentativa de disfarçar o que sou negando o que sou, porque não tenho a garantia de que a revelação de mim e do meu desejo não afaste o outro que não quero ver afastado.

No entanto, apesar da tentativa de se ocultar ao outro, segue-se a verdade que não se é capaz de esconder de si próprio: 

Mas a verdade é que eu sou louco por você/E tenho medo de pensar em te perder/Eu preciso aceitar que não dá mais pra separar as nossas vidas.

Para a Psicanálise é isso que importa, a verdade do sujeito, ainda que uma verdade imoral, ilegal, fora dos padrões e dos ideais. É essa verdade que o processo analítico nos auxilia a encontrar.

E nessa loucura de dizer que não te quero/Vou negando as aparências, disfarçando as evidências/Mas pra que viver fingindo se eu não posso enganar meu coração/EU SEI QUE TE AMO.

O inconsciente não tolera a repressão. Precisa se manifestar, expressar a verdade mais profunda e íntima, o desejo tão claro que se tenta obscurecer. Loucura é dizer o contrário do que se sente, negar as aparências, disfarçar as evidências. Negar e disfarçar para quem? Se não posso enganar a mim mesmo, minha mente e o meu coração. De que adianta fingir, mentir, calar, se a minha vontade é gritar que te amo?

Chega de mentiras, de negar o meu desejo/Eu te quero mais que tudo, eu preciso do seu beijo/Eu entrego a minha vida pra você fazer o que quiser de mim/Só quero ouvir você dizer que sim!

Diga Sim pra mim! Sim pra mim!

Diante da impossibilidade de mentir para mim mesmo, chega! O desejo latente se manifesta. Expresso a minha vontade pelo amado que desejo fundir com a vontade dele, que o quero mais do que qualquer outra coisa na vida, que estou entregue, rendido, porque quem ama é sempre escravo do amado, queiramos ou não. Admitamos ou não.

Mas não estou disposto ou preparado para o que o outro tem a dizer diante de minha revelação. Então, digo eu mesmo o que quero ouvir do outro: "Só quero ouvir você dizer que sim!" Não aceito outra reação, nem resposta que não seja SIM. A quem ama não importa se o outro corresponde ao ideal criado, à fantasia. Só quero que o outro confirme minha fantasia. "Mente pra mim, me ajude a viver".

Diz que é verdade, que tem saudade/Que ainda você pensa muito em mim/Diz que é verdade, que tem saudade/Que ainda você quer viver pra mim

É como se dissesse: Diga apenas o que quero ouvir. Não me interessa ou não suporto outra verdade que não seja a minha.

Não fala nada, deixa tudo assim por mim/Eu não me importo se nós não somos bem assim/É tudo real nas minhas mentiras/E assim não faz mal/E assim não me faz mal não

Deixa eu inventar o amor, deixa eu viver desse amor inventado. Eu te imagino, eu te conserto, eu faço a cena que eu quiser. 

Deixa tudo assim por mim.

O que importa é a ficção de amor, é criar e recriar o outro só pro meu prazer, afinal o inconsciente não se assenta no princípio da realidade consciente, mas do prazer, da imaginação. A verdade é aquela que crio e acredito, como diz Clarice Lispector: "Quero uma verdade inventada."

Será que você não é nada que eu penso? Também se não for, não me faz mal, não me faz mal, não.

Eu te invento, ó realidade.

Amo, não amo. Quero, não quero. É, não é. Tudo ou nada. Isso e aquilo. A lógica aristotélica cai por terra quando estamos diante dos assuntos humanos. Enganos, invenções, dúvidas, desejos inconfessos, aparentes contradições: é de tudo isso que somos feitos. 

E não há porque negar as aparências ou disfarçar as evidências. Sabe por quê?

Porque simplesmente não conseguimos nos enganar, pois como diz Pascal: "O coração tem razões que a própria razão desconhece".

Tentar disfarçar com que finalidade, se quando a boca se cala, as pontas dos dedos falam?













 







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