Na teoria tudo é uma maravilha
Quem mora em apartamento, como eu, deve ter escutado de vizinhos muitas coisas as quais preferiria que tivessem passado longe dos ouvidos. Comigo acontece o mesmo, e olha que vivi até agora em quatro apartamentos diferentes e, em todos eles, fui e sou expectadora de conversas e acontecimentos da desconhecida vizinhança que se faz conhecida apenas pelos berros.
E por falar em berros, já fui acordada no meio da noite por muitos deles, vindos de uma mulher que apanhava do marido e tinha uma filhinha que presenciava tudo. Mas todas as vezes que pensava em denunciar, lá estava ela no outro dia toda sorridente junto ao torturador.
Era tão comovente a cena que cheguei a pensar que, na verdade, ela não apanhava de verdade. Provavelmente, existia conivência para acaloradas noites de sadomasoquismo. Só essa hipótese explicaria ela chamá-lo de amor e estar tão aparentemente feliz ao seu lado após noites em que se ouvia tamanha gritaria.
Esses não são mais meus vizinhos, graças a Deus. Agora, tenho outros, cujos gritos e conversas são de diferente ordem.
Os diálogos acontecem num tom muito alto. A voz de uma das mulheres é chata, estridente e me incomoda profundamente.
Miguel, vai tomar banho. Miguel, você já comeu? Miguel, vá escovar os dentes. Miguel, eu sou a sua mãe e você tem que me respeitar.
Miguel dá-lhe cada uma na cara dessa mãe que fico daqui encabulada. Viro para meu esposo e digo: mas que menino petulante, mas esse Miguel é muito do atrevido, mas que menino desobediente. Ah se fosse meu filho...
E penso logo que se fosse meu filho, não estaria fazendo o que Miguel faz, mas outras coisas perfeitamente justificáveis pela idade, pela fome, pela noite mal dormida, pelo resfriado... Mas bem que esse filho é também o resultado da relação estabelecida com essa mãe e do comportamento dela. E como fala alto, como grita, como repete e repete e repete. Ah se fosse minha mãe... Deve ser bem isso que Miguel também pensa para falar alto, gritar e repetir, repetir e repetir.
Sem falar que o único assunto da casa é comida. Claro que é dos mais importantes para nos manter de pé, mas de que mais eles se alimentam além de feijão e arroz? Pelas conversas que ouço, ainda não consegui descobrir. No entanto, o fogão não para e dá para sentir o cheiro de comida até quando acordo na madrugada.
Às vezes fico tão indignada com a quebra do meu silêncio que vou lá na minha cozinha, fecho a janela bem violentamente e balbucio algumas palavras para eles escutarem e perceberem o quanto incomodam. Parece que não tem surtido nenhum efeito. Vai ver que nem mesmo escutam.
Há poucos dias, assisti a uma entrevista com uma atriz que acaba de se tornar mãe e ela disse que as leituras que fazia reduziram drasticamente após a chegada da filha, que exige muito cuidado e atenção. De fato, como os filhos exigem de suas mães. E exigem sobretudo que elas tenham certo jogo de cintura que, vamos combinar, não é nada fácil em muitas ocasiões. Às vezes, tudo o que se aprende sobre civilização e elegância não dura um segundo diante das birras e teimosias dessas criaturinhas que são bem filhas de seus pais. Uma amiga paraguaia, dizia-me: Só tive um Maiara, porque filho escraviza. Entendi tanto o recado que até agora sou senhora de mim mesma.
Um dia comentei aqui em casa: Se esse Miguel ficasse dois dias comigo, ele ia se ajeitar. Ah se ia!
Meu esposo olhou-me de soslaio: Quando tiver um filho, ele vai fazer pior com você.
Ah, mas não vai mesmo.
E o que você iria fazer com ele? - perguntou-me.
Pensei em como me relaciono com os meus sobrinhos e demais crianças, sorri ao responder:
Eu diria: faça o que você quiser, meu filho. Mamãe deixa, meu amor.
Na teoria, caros leitores, tudo é uma maravilha.
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