Maior que a culpa

 "É impressão minha ou a gente passa a segunda metade da nossa vida tentando nos curar da primeira?" 

Essa é a pergunta que um homem faz num vídeo que assisti. Pergunta que não saiu da minha cabeça pela veracidade que contém e que desconcerta.

A Psicanálise serve também a isso: a tentar nos ajudar a amenizar as dores que nos atingiram nos primeiros anos de nossas vidas. 

Digo que as dores que nos afetaram na infância nos atravessam de tal modo que deixam marcas profundas de forma a jamais nos desfazermos delas. 

São dores dilacerantes e que nos fragmentam. Deixam-nos aos pedaços. Tanto é que é isso mesmo: passamos a vida tentando juntar os pedaços e os fragmentos que em nós se quebraram. Tentamos devolver a nós a unidade e a totalidade de nosso ser com muito custo e peleja. Conseguimos? 

Imaginemos um cristal que se quebrou e não queremos jogar seus restos fora. Então, juntamos e colamos os pedacinhos um a um. Ao final, não teremos o objeto perfeito e intacto como antes. Ele terá sido refeito e carregará as marcas de todos os remendos. Esse cristal somos nós.

O escritor russo Tolstói faz uma reflexão absolutamente genial: "Da criança de cinco anos até mim, é apenas um passo. Mas do bebê recém-nascido até a criança de cinco anos, a distância é espantosa."

Parece que a fundação e os alicerces de nossa constituição psíquica, pelo que diz Tolstói, se dão até os cinco anos de idade. Daí em diante, o material da construção do sujeito opera-se a partir dessa base que, se não for sólida, ameaça despencar e ruir.

No primeiro volume de sua biografia, Memórias de uma moça bem comportada, Simone de Beauvoir declara: "prometi a mim mesma não esquecer, quando crescesse, que com cinco anos já somos um indivíduo completo."

Dessa constatação surge a importância do que devemos receber durante os primeiros anos de nossas vidas. As crianças precisam de presença e afeto, de proteção e segurança, de cuidado e amor. Sou a favor de que os pais sejam mais presentes na vida dos filhos até a idade citada pelos dois autores aqui aludidos.

E, em caso da impossibilidade de passar mais tempo ao lado delas, que, pelo menos, quando isso ocorrer, seja um tempo de qualidade, com zelo genuíno, atento e não mecânico ou disperso.

No entanto, nem sempre nos sentimos acolhidos no seio da família. Somos criados por adultos feridos que nos ferem, que nos olham torto e feio, que jogam em cima de nós revoltas e frustações. 

Nesse sentido, numa entrevista, a cantora Ivete Sangalo diz que, se pudesse dar apenas um conselho aos pais, seria para que eles cuidassem de suas dores e traumas a fim de que não afetem tão negativamente os filhos. 

Ouvi de um psicanalista: "Às vezes, a família é um campo de concentração". Chocante, mas de uma verdade incontestável. E sem o reconhecimento e a aceitação desse fato não há como transformá-la num ambiente possível de se oferecer as bases para que uma criança seja recebida e cuidada. Precisamos nos assentar sob fundações mais firmes em que o acolhimento e o amor sejam estruturantes.

É por termos, em algum momento de nossa constituição enquanto sujeitos, sentido a dor de um trauma, de uma rejeição ou da falta de compreensão e proteção que acabamos reproduzindo esses atos nas nossas relações com os outros. 

Sempre que alguém se diz ferido, me pergunto: E quantas vezes também ferimos? Tantas palavras doídas foram lançadas contra nós e tantas palavras cortantes proferimos contra os outros. Na nossa ignorância, somos cruéis. Nem sempre, intencionalmente, o que não deixa de ser grave.

Somos todos reciprocamente tóxicos até que essa realidade seja transformada pela conscientização do que faz que sejamos como somos. É a partir desse despertar que temos a chance de mudar a forma como nos afetamos.

Espinoza, em Ética, desenvolve a teoria de que somos aquilo que os afetos fazem de nós, ou melhor, do que fazemos com os nossos afetos. 

Para ele, afetos são as marcas que deixamos nos outros (pessoas e coisas) e as que os outros deixam em nós. 

Segundo o filósofo, há os afetos alegres, que aumentam nossa potência de ser, existir e criar, e os tristes, que causam efeito contrário. 

Sendo assim, temos de nos aproximar dos alegres para que sejamos marcados de forma mais positiva e benéfica e, assim, causar esse efeito também nos demais.

Ao saber das coisas que agora sei, a forma com que me relaciono continuamente se transforma. As palavras podem ser consolo ou farpas. E tantas vezes devo tê-las expressado de um modo que não deveria! 

Mas, sem mea culpa, digo que foi por puro desconhecimento de causas e não movida por uma vontade deliberada de ferir. 

Assim, identifico-me com as palavras de Clarice Lispector: "Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri."

Soube da existência de alguém que nutre profunda mágoa por mim, pelo que eu disse ou fiz e que o afetou. 

Sentir mágoa de uma pessoa, já li em algum lugar, é como pegar uma brasa com a mão e achar que está queimando o outro. 

Sinto muito por ele nutrir esse rancor, pois já me perdoei. 

Se fiz o que fiz, como fiz, sem querer me redimir, foi por não saber a magnitude dos efeitos daquilo que fazia por não saber.

Neste exato momento, sei um pouco mais do que no minuto que acabou de passar. Não carrego culpas, tento, hoje, não repetir os mesmos erros de outrora. E aprendi com Clarice: "É preciso ser maior que a culpa".

A Psicanálise é uma aliada nessa jornada de transformação individual e social, já que nos conduz a acessar o inconsciente, lugar de armazenamentos desordenados.

Se passamos a segunda metade da vida tentando nos curar da primeira, é urgente que não percamos mais tempo diante da necessidade de aperfeiçoamento na criação de nós mesmos e na maneira como tocamos os outros. 





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