É tudo culpa da mãe?

Pode-se dizer que a Psicanálise já nasceu antipática. Custou para ser aceita numa sociedade que se pretendia puramente racional e que preferia jogar para debaixo do tapete aquelas coisas que vêm de dentro de nós e que achamos por bem não explorar.

Subversiva, colocando-nos de cabeça para baixo, dizendo o avesso daquilo que preferíamos acreditar ou simplesmente negar, ela não perdeu seu caráter de abalar os alicerces da alma humana. 

Nesse sentido, disse-me alguém: "Eu não gosto desse negócio que Freud inventou de dizer que tudo é culpa da mãe."

Hein?

Em primeiro lugar, cumpre dizer que a palavra culpa não foi inventada por Freud, não figura nos dicionários de Psicanálise, não fundamenta seus termos e muito menos contribui para aquilo que ele pretendeu com a clínica psicanalítica, ou seja, possibilitar ao indivíduo  o exercício das capacidades de amar e de realizar, que ficam comprometidas quando o paciente está imerso em neuroses e traumas.

Mas não havemos de negar que a culpa existe e pode ganhar contornos sólidos no psiquismo das pessoas. Foi o cristianismo que a incutiu em nossas cabeças como forma de provocar medo e de exercer controle social. 

Uma das melhores maneiras de nos subjugar é nos meter medo ao tempo em que se promete a salvação, caso sejamos obedientes. Os pais, ao tentar educar, também usam esse modelo por repetição. O que acaba incutindo a culpa em si mesmos e nos próprios filhos.  Ainda hoje somos adâmicos: a culpa foi de Eva, a culpa foi da serpente... a culpa, a culpa sem fim.

Mas quando se trata de mãe, pelo amor de Deus!, vamos repensar essa culpa. Até porque Freud concebe a mãe como humana, também sujeita a amor, ódio e ignorâncias, não como uma mulher imaculada e desprovida de desejos próprios. 

Assim, vamos acompanhar o brilhantismo e a sofisticação do pensamento freudiano que pretendeu apenas compreender, jamais condenar.

Para Freud, a mãe é o nosso primeiro objeto de amor. Ponto. Poderíamos parar por aqui, mas explico.

Nascemos com uma energia pulsional, a libido, e nos primeiros meses de vida ela é autoerótica, ou seja, destinada para nós mesmos. O seio da mãe e toda ela é, para o bebê, uma extensão de si. Não há percepção psíquica de separação. A fusão existente no útero é estendida por um tempo após o nascimento.

O olhar, as palavras, os anseios, as emoções e os sentimentos da mãe afetam a criança de tal modo que Freud vai dizer que a forma como isso foi sentido atravessará a nossa vida e se repetirá no modo como viveremos as relações com outras pessoas, principalmente com aquelas que serão objetos de nossas fantasias de amor. 

Não à toa, a certa altura da narrativa, o personagem Riobaldo, de Grande Sertão: veredas, diz que ao mirar os olhos de Diadorim, seu amado, foi transportado para os olhos da própria mãe.

Também a sexualidade é experienciada primitivamente nesse contato com o corpo da que amamenta, acolhe, abraça, beija e acaricia. Dizer que já nascemos com sexualidade foi um dos motivos porque Freud e sua teoria foram rechaçados, pois a crença da época era de que só a puberdade nos colocaria frente a tais impulsos. 

Acontece que sexualidade é conceito amplo que não se confunde com o sexo como o conhecemos, embora o abranja. A forma como o bebê vivencia essa sexualidade com a mãe é de outra ordem, mas manterá traços comuns com a forma como a viveremos mais tarde com nossos parceiros.

Para Freud, a criança mantém o desejo de fusão com a mãe, quer também ser o único objeto de desejo dela. A mãe do cantor Cazuza diz ter se espantado quando, num show, ao final, ele berra: "Nem quis comer a tua mãe?", trecho da música "Só as mães são felizes". 

O que é o ato de comer senão o de integrar a coisa, fundi-la a nós? Era ele quem também questionava: "Mamãe, você gosta mais de mim ou do papai?" Lucinha Araújo disse jamais ter respondido a essa pergunta. O que, provavelmente, estremecia as certezas de Cazuza quanto à possibilidade de não ser tão amado quanto gostaria.

O pai, portanto, teria a importante função de representar um corte na relação simbiótica mãe-bebê, que se não ocorresse beiraria o incesto. É minha mãe quem diz algo que indica essa necessidade de separação: ela conta que se deixasse meus irmãos estariam mamando até hoje e, portanto, ela própria retirava o peito deles - deixava-os des-peitados. 

Se permanecêssemos mais tempo sendo amamentados, o seio deixaria de ser um objeto com viés nutritivo e se transformaria num objeto erótico. Como ainda o é. A diferença é que já não se trata mais do seio da mãe, mas da representação dele em outra pessoa.

Freud foi buscar na mitologia grega o material para elaborar a teoria do Complexo de Édipo a fim de demonstrar uma das configurações do nosso inconsciente.

Sófocles narra que quando Édipo nasceu, seus pais consultaram o Oráculo de Delfos para conhecerem o destino do filho. Ficaram sabendo que Édipo mataria o pai e desposaria a mãe. Tomados de horror e para se livrarem dessa profecia, entregaram o filho para que o matassem. Ocorreu de não o matarem e Édipo cresceu sem saber que não fora criado pelos pais verdadeiros. 

Num determinado dia, por obra do acaso (ou seria do destino?), acabou matando Laio, um homem que surgiu em seu caminho. E quando Édipo chegou à cidade em que Laio era rei, os habitantes o tornaram substituto. Édipo se casou com Jocasta, a viúva. 

Laio era o pai e Jocasta a mãe de Édipo. Tudo isso ele o fez sem saber, movido apenas por seu destino, ou por aquilo que Freud teorizou como inconsciente.

Essa história vai ao encontro da frase de Carl Jung: "Enquanto não tornares consciente o inconsciente, ele vai conduzir a tua vida e o chamarás de destino."

É claro que o Complexo de Édipo precisa ser revisto e reelaborado, pois a Psicanálise se faz e se reconstrói a partir de tempos e contextos específicos. Na Era Pós-Moderna não apenas o pai (ou outro homem) afasta a mãe de seu filho. Ela já não se encontra confinada no ambiente doméstico submetida à vontade de um homem que a faz prisioneira, exige sua presença e contorna os limites do seu desejo. As mulheres conquistaram o desejo de desejar.

E aí que já não temos apenas um objeto contra o qual voltar, o pai, como sendo o único que representa o corte entre a mãe e o filho. A mulher quer trabalhar, deseja reconhecimento fora de casa, sucesso na carreira, fama, conhecimento acadêmico, ser olhada e admirada pela beleza do próprio corpo. 

Ouso dizer que, hoje, o trabalho, a promessa de sucesso, de reconhecimento, de poder e toda multiplicidade de desejos que uma mulher é capaz de acumular contribuem para essa separação mãe-filho. Acontece que quando escolhemos ou estamos num determinado lugar, consciente ou inconscientemente, estamos renunciando ou abrindo mão de estar noutro.

Então, não se trata de culpar a mãe por possíveis neuroses e traumas de seus filhos. Mas de reconhecer que sim, há impactos decorrentes da própria maneira como se dá a ligação e a relação entre eles, uma vez que as bases do nosso psiquismo que também marcam nosso corpo se constituem nos primeiros meses e anos de vida quando ainda nos sentimos fundidos com nossa mãe e a desejamos mais que a qualquer outro. 

Evidências disso, entre outras falas e histórias, foi o depoimento dado pela atriz Demi Moore, em que ela diz ter conquistado fama e riqueza, mas o que ela sempre buscou em tudo foi o amor da mãe. Ou Madona que, quando confrontada a respeito de seu sucesso, e ao ser questionada sobre se o trocaria por alguma coisa, respondeu: "pela minha mãe".  A cantora perdeu a mãe aos cinco anos de idade.

É. Parece mesmo que nosso destino está na origem. Andamos, circulamos, conquistamos o mundo à maneira de Alexandre, o Grande, para ao final dizermos: só queria o amor da minha mãe.

É sobre esse amor primeiro, que serve de modelo com o qual viveremos nossas demais relações, que se debruçam os psicanalistas. Em momento algum para condenar as mulheres nas relações com seus filhos, mas para que haja compreensão da magnitude e da força que esse vínculo exerce em nós. 

O escritor José Saramago declarou que sua mãe era um tanto reservada e não demonstrava sentimentos, embora ele soubesse que ela o amava. Diz que, quando criança, ficava às voltas da mãe ansiando um beijo, que nunca veio.

Saramago confessa que essa relação com a mãe influenciou a forma como amou as mulheres, a elas destinando a ternura e o carinho que ele próprio tanto quis e que não teve.

Diz Freud: 

"O amor de hoje é sempre a repetição do protótipo do primeiro amor infantil com a mãe. Amar é invariavelmente amar pela segunda vez."

Como Édipo, não há como escapar. É parte do destino humano.




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