O VIRTUAL É O REAL

Acabara de acordar e era muito cedo quando o celular vibrou. Esperei que ele aparecesse durante todo o dia anterior. Nenhum sinal. Ele não gosta de mim, não se importa comigo e nem ao menos fez questão de me ver, foi o que fantasiei.

Mas no dia seguinte lá estava ele, despontando nas primeiras horas da manhã e dando mostras de que estava enganada. Ele queria me ver e, não só queria, como propôs que tomássemos café juntos. 

Ao nos encontrar nos abraçamos com a saudade e a intimidade silenciosa, mas pulsante, que nos uniu dias e dias. Conversamos por horas, olhamos nos olhos um do outro, nos despedimos e nos reencontramos num restaurante à hora do almoço.

Conversamos por mais algumas horas, demo-nos as mãos, olhávamo-nos.

No trajeto em que me levava para o hotel, ainda no carro, acariciou-me por cima da blusa. Eu... Devolvi-lhe o gesto de outro modo. Nossa relação, nossa atração, nossos gostares pareciam não ter se alterado. Queríamos um ao outro. Ainda nos queríamos.

Abraçamo-nos em despedida. À noite, eu partiria.

Deitei-me à espera de que o tempo passasse até o momento de ir-me. O celular vibrou. Eu vibrei. Era ele. Querendo? Querendo.

Mas nós dois estávamos lado a lado, pertos um do outro há pouco tempo e você não tentou nada. Por que agora que estamos distantes?

Ao que ele perguntou: Mas qual a diferença?

Pergunta que me levou à reflexão: então, para ele, estar com alguém de corpo presente e estar com alguém virtualmente não faz tanta diferença assim? Então ele esteve comigo durante todo o tempo em que ficamos geograficamente distantes, pois não deixava de me mandar mensagem ou de ligar um dia sequer? Então o virtual também é o real?

Acontece que ainda estamos apegados à concepção de mundo da Física Clássica e acreditamos que a realidade é só aquilo que vemos e tocamos com as próprias mãos, como São Tomé. No entanto, a Física Quântica trouxe outro modo de conceber a existência. Ao migrar do macro para o micro, ao observar a natureza e o comportamento da menor unidade quantificável da matéria (quantum, daí quântica) os cientistas descobriram que as coisas não são tão palpáveis quanto nossos sentidos nos fazem acreditar.

Tem-se, por exemplo, que a matéria se comporta ora como partícula, ora como onda, a depender do pensamento do observador. Que um elétron ligado a outro, entrelaçados, pode interferir mutuamente mesmo que separados pelo tempo e pelo espaço. Não haveria passado, presente e futuro. Tudo estaria acontecendo simultaneamente. Essa ideia parece dar um nó em nossa cabeça. Mas não se espante, pois também deu na cabeça de Einstein e de outros cientistas quânticos.

Ao aprofundar na substância do átomo, chega-se ao vácuo quântico, ao vazio. O que me remete a Eclesiastes quando diz "vaidade das vaidades, tudo é vazio e corrida atrás do vento". O Universo seria um mar de ondas invisíveis contendo informações que, pelo pensamento, seriam materializadas. O Universo, como afirma uma das sete leis herméticas do Caibalion, seria essencialmente mental - "o TODO é mente; o universo é mental".

E o que isso tem a ver com a história inicial do encontro entre um homem e uma mulher? É que encontros não precisam de corpos presentes nem de toques para existirem e fazerem sentido, muito menos para o estabelecimento de conexão. 

Quem vai negar que amor se trata mais de pensamentos e sentimentos que nutrimos ou de ideias que nos povoam a respeito de alguém, ou do que esse alguém produz em nós, que do próprio ato de tocar e outras aproximações físicas? 

As redes estão aí para confirmar que a tecnologia imita a virtualidade do pensamento de modo a nos conectar uns aos outros e ao mundo sem que precisemos nos mover de onde nos encontramos. Tudo isso em nossas mãos e a um só clique.

O filósofo Zygmunt Bauman usou a expressão mundo líquido para definir as dinâmicas que ocorrem com a globalização. É como se todas as formas até então consideradas sólidas e seguras se diluíssem em liquidez. Nada parece escapar: os conceitos de família, trabalho, instituições, amor, amizade e de identidade são transformados, demolidos e reconstruídos a todo instante, e já não nos definimos por uma só perspectiva. Nada nos garante que daqui até dobrarmos a próxima esquina continuaremos com a certeza de minutos atrás. 

No campo das relações humanas, tem-se maior flexibilidade e maleabilidade. As ideias de mando e de obediência intrínsecas ao modelo de sociedade piramidal se diluem para dar espaço à horizontalidade entre as pessoas, cada uma exercendo influência sobre as outras. 

A autoridade e o poder não estão nas mãos de um único para quem todos devem dizer sim. O filho pode ter tanta autoridade quanto o pai, no sentido de que também se arvora no direito de ser autor da própria vida a partir dos próprios conceitos, ideias e modos de ver. 

Não é a humanidade que se aproxima do fim, segundo a filósofa Viviane Mosé, mas um modelo que cai por terra. A verticalidade, a rigidez, a imutabilidade saem de cena. O mundo orgânico se dissolve. As novas gerações passam a não se parecer com as anteriores, pois nascidas sob outras bases que não aquelas que nos sustentaram até aqui. E essas bases não são feitas de ferro e concreto, mas do imaterial.

Que os pais não fiquem assustados com as diferenças apresentadas por seus filhos, muito menos tente reduzi-los a diagnósticos por não saberem lidar com o desconhecido que se lhes apresenta. Diante daquilo com o qual jamais lidamos, em vez de nos apegarmos a velhas fórmulas e tentar aplicá-las agora, resta abrir espaço para o que se impõe, formulando e construindo a partir do que as novas circunstâncias exigem.

O ambiente tecnológico transforma o modo de pensar e de agir de todos e quem nasce nesse contexto não se ancora em concretudes e adota a fluidez como guia. A mudança mexe de tal modo nas estruturas consolidadas que a filósofa Marilena Chauí diz que estamos vivendo uma mutação civilizacional.

Faz-se necessário a renovação das mentalidades à maneira da atualização dos programas de um computador. A alguém que insiste em se apegar a antigos conceitos e paradigmas para os quais já não há espaço, podemos dizer: Atualiza o software, por favor!

O mundo virtual não pedirá licença nem será suspenso até que nos reconfiguremos. Todas as áreas de nossas vidas sofrerão ou se beneficiarão de seus efeitos, a depender da resistência a ele que cada um de nós empreenderá com a força da qual já não dispomos.

Trabalhos poderão ser executados de qualquer canto do mundo, relações se estabelecerão e chegarão ao fim sem nunca as pessoas terem dado as mãos uma para a outra, filhos serão gerados sem trocas de fluidos, indivíduos farão sexo por meio de uma ligação ou de uma câmera ligada. À maneira Wi-Fi, o real será apenas questão de conectividade ou como diz a Física Quântica, conexão não-local.

No sexo, Lacan já havia afirmado: "A relação sexual não existe." Para o psicanalista, cada pessoa chega para o sexo com a própria fantasia (imaginação) e cada corpo, mesmo em contato com outro, goza de si e em si mesmo. Ao que parece, podemos igualmente gozar acompanhados de nossas fantasias. 

Além do mais, Freud, depois de inúmeros atendimentos clínicos, constatou que a realidade que se cria no psiquismo é mais forte e real que a realidade objetiva. Os fatos não valem por si mesmos, mas a narrativa (a informação) que contamos sobre eles é que nos implica e sustenta (ou não).

A corporalidade não demandará tanta presença, salvo como instrumento por meio do qual se manifestará a espiritualidade, a mentalidade, a conectividade, ou como queiram nomear isso que é o imaterial ou o vazio em nós que contém a informação, o espírito ou a inteligência.

Parece que o mundo de Platão não perdeu sua força. O real está longe das aparências, daquilo que nossos sentidos percebem, e que nos ilude. A essência estaria no mundo das ideias, único lugar onde poderia existir a tão sonhada perfeição.

E para além de tudo isso, existiria "a inteligência universal", única e total, a qual, para Espinosa, está manifestada em tudo que existe de visível e de invisível aos nossos olhos, tão acima da nossa razão que o filósofo Kant achou por bem nem se meter com esse assunto.

E se tudo isso parece não ter nada a ver com o encontro do homem e da mulher a que me referi no início e que parece ter se perdido nesse emaranhado de informações a que minha imaginação correu solta, é só na aparência que nada tem a ver com nada. 

Tudo está entrelaçado. O Todo é Um. E nós dois, homem e mulher, já nos unimos em conectividade para além da eternidade. É só crer para ver.






Comentários

  1. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻❤️❤️

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