FILHA DO SILÊNCIO
A cena se fixou na minha memória. Estava num café, lia um livro e, quando me percebi, ao retornar daquele instante em que os contemplei imersa, meus olhos pousaram sobre o nada.
Um homem com a filha no colo se aproximaram. Ela dormia recostada em seu ombro. Ele a acordou carinhosamente, sentaram-se. O pai permaneceu ao seu lado enquanto levava à boca pequenina algumas colheres com alimento. Trocavam olhares ternos e de mútua cumplicidade. A filha estava em segurança. O pai a amparava e a protegia.
Volto a mim e procuro na lembrança algum momento em que tenha vivido algo parecido com meu pai. Não há registros. Nada. Palavra? Nenhuma. O silêncio marca sua existência. A ausência dele é um permanente estar, sem sussurros ou ecos.
Certa vez, a escritora Nélida Piñon disse: "Sou filha da minha mãe e dos livros que li." Ao ouvir essa declaração, me senti tocada no mais profundo de mim, e transportada a outra coisa que havia lido ao abrir um livro numa página qualquer.
Algo no sentido de que o interesse de uma menina por livros poderia se relacionar à falta do pai. Na inexistência de uma figura representativa da lei ou de autoridade, ela procuraria os livros ou outros substitutos que contornassem seus limites e estabelecessem o ordenamento para o caos.
Essas reflexões se assentaram no meu íntimo, onde as deixei, e não pude entendê-las, salvo, anos mais tarde?, a partir do entendimento a que me levou a Psicanálise.
Eis a explicação pela qual fui conduzida aos livros e, também, porque escrevo. Para entender a minha não inteligência, o meu sentimento, diz Clarice Lispector, fui obrigada ao esforço de me tornar inteligente.
Para o psicanalista Jacques Lacan há três registros ou dimensões da experiência humana que marcam o inconsciente:
No início, era a completude de um bebê na barriga de sua mãe. Otto Rank chega a afirmar que o primeiro trauma que vivemos é o do nascimento. Há uma brusca ruptura, um paraíso que se perde para sempre e para onde passamos a vida querendo retornar. Ligamo-nos às pessoas, às ideias e às coisas na busca e na tentativa de ter de volta a sensação daquilo que Lacan nomeia de registro do real.
O real escapa à linguagem e à significação. Não há signo que o simbolize ou nomeie. É a parte da experiência para sempre perdida e que escapa à expressão e à compreensão. Inominável, impossível. A linguagem se queda muda por não identificar palavra que a ele corresponda.
Nos primeiros meses após o nascimento, imaginariamente, supomos ser o objeto de desejo único e insubstituível de nossa mãe. É com ela que nos identificamos. Somos um. A alienação ao desejo da mãe é total e o início de nossa subjetividade se funda a partir do reflexo da imagem desse Outro materno. O registro do imaginário é do domínio da ilusão e da aparência. Acreditamos que somos tudo e queremos ser tudo para a mãe. Só que não.
A nossa primeira queda narcísica, no entanto libertadora, porque nos libera do desejo e da submissão ao outro, é quando percebemos que o desejo da mãe não reside em nós.
O pai é o responsável por revelar à criança que a mãe não a deseja, mas deseja o falo, significante pertencente ao domínio daquilo que é atribuído ao homem. A função do pai é metafórica e de enunciação. Ele instaura o registro do simbólico na criança ao promover o corte dela com a mãe e lançá-la na falta. É a partir da lei paterna, da palavra do pai, que a criança se apossará do próprio discurso e criará o mundo simbólico feito de linguagem e significações.
Numa sessão analítica, Júlia, cuja palavra do pai fora silenciada ou enfraquecida pela força com que a mãe atuava, revelou: "Em minha vida, faltou-me um início, uma qualquer coisa de muito simples, mas fundamental."
Faltou a Júlia o que faltou a mim: o poder da palavra do pai.
Quando a voz do pai fraqueja, somos filha do silêncio, e precisamos criar do nada o código de linguagem para elaborar a castração - a falta que nos constitui devido à separação da mãe e à verdade de não sermos o objeto de seu desejo. Então, o que sou?
A escrita é o sintoma, o imperativo do pai atuando sobre mim: "você deve ser bem sucedida onde falhei." Ao me dar a palavra, estou tentando me salvar da dupla falta: não ser o objeto de desejo da mãe e não ter recebido a palavra do pai de que precisava para elaborar o não ser para o grande Outro.
"Foi da palavra do pai que ela ficou à espera/ palavra que não veio. Palavra intermediadora, entre ela, criança, e a mãe, com seu poder aparentemente ilimitado; se por este Júlia vivia ameaçada, por outro lado acreditava não poder viver sem a proteção materna; afinal, via-se como extremamente frágil para ser ela mesma."
Busco escrever para dar consistência ao outro, a consistência que vale também para mim, cuja ausência inicial do verbo fez que procurasse os livros e que também os escrevesse.
Diz Clarice Lispector: "Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida."
A verdade é essa mesmo: A gente escreve é na tentativa de criar o Verbo salvador que não veio do Pai, pois lançados à solidão daqueles que, em vez de serem criados, criam.
P.S: Hoje, 25 de maio de 2025, dia em que, caso meu pai fosse vivo, completaria 66 anos. Devo corrigir-me: meu Pai está vivo nas palavras que nunca disse e, por não dizê-las, coube a mim enunciá-las.
"As pessoas não morrem. Ficam encantadas." Guimarães Rosa
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