A conquista difícil de um amor (ou O amor como desculpa para colocar coleira.)

A conquista difícil de um amor é um dos textos da Clarice Lispector que está tirando meu sono. Digo "um dos", porque há outros dela que também me causam insônia, como "A atualidade do ovo e da galinha", o qual falarei mais para o futuro, por ser um conto complexo e até enigmático, em vias de interpretação constante.

Em "A conquista difícil de um amor", a escritora relata uma situação em que está numa fila, acompanhada de um amigo, quando, de repente, entra um homem conduzindo um animal pela coleira, como quem conduz um cachorro.
"Só que havia no cachorro algo que não era cachorro".

O bicho tanto não era o que parecia ser que acabou se tornando muito esquisito, impossível de ser identificado.

Que animal era aquele? A curiosidade pairou no ar. Não havia possibilidade de questionar o bicho sobre quem ele era. Nem ele mesmo havia de saber. Assim, a saída era perguntar para o próprio dono, cuja fisionomia estampava uma tensão presente naqueles que se empenham na grande luta de transformar uma coisa em outra.

Ao ser questionado sobre que bicho era aquele, o dono respondeu que era um quati. Um quati que ele tratava como se cachorro fosse. Surge a pergunta: Por que ao invés de possuir um cachorro original aquele homem se apossou de um quati para lhe dar ares de cachorro? Não seria mais fácil ter um cachorro?

E mais: para gozar da companhia do bicho era mesmo necessário prendê-lo? Que espécie de carência um ser humano experimenta a ponto de submeter algo ou alguém? Não saberia ele que o tal amor, usado inclusive para justificar crimes, se demasiadamente ofertado esmaga? "Quem diz que nos ama quer que transformemos em alguma coisa de que eles precisam". O amor daquele homem transformara um quati em cachorro e o animal acabava não sendo nem uma coisa, nem outra.

Tente arrancar uma flor e possuí-la para ver o que acontece: ela murchará e morrerá. Tente possuir um ser e ele definhará. Quando possuímos qualquer coisa costumamos transformá-la e utilizá-la como instrumento de nossas necessidades. E, se essa coisa que lutamos por transformar e adequar a nós é um outro ser, cometemos o maior dos homicídios, aquele que se pensa estar vivo, quando morto há muito tempo está.

"Quantas pessoas não estão sendo o que realmente são?" Quantos são quatis transformados em cachorros encoleirados? Quantos se perderam e já nem sabem mais o que são?

Clarice continua: "Penso em maridos ou esposas que não dão direito ao outro de ser o que realmente é - e nunca contam o segredo."

Existem aqueles que submetem e os que permitem a submissão.

Esses dias tive oportunidade de conversar com uma mulher resignada. Ela contou-me que o casamento está de mal a pior. O marido foge de um diálogo. Ela quer falar. Ele não quer escutar. "Por que não se separa?" A resposta: "por preguiça". Amanhã, essa mesma mulher o acusará de tortura. Ou será auto-tortura?

"Ele não quer conversar, mas quando fiquei doente foi o único que cuidou de mim."

"Ele é um cara legal."

Então, aguente firme e aceite a mudez como destino.

Também, conheço um homem que tem medo de falar na frente da esposa. Qualquer indagação e ele olha para ela com vistas à aprovação. Sua postura está enrijecida, meio robótica, como quem anda em constante tensão. Transformou-se em algo... É um quati encoleirado.

Esse homem diz sentir gratidão pela esposa. O resultado é que ele também ficou mudo.

Quanto a mim, sinto até ódio de quem não me deixa ter a minha realidade. Isso, eu não perdoo. Não permito não me ser. Não admito que tentem me transformar numa outra coisa... Essa sempre foi a minha maior exigência. Disso não abro mão, nem faço concessões.

Todos aqueles que deram o menor sinal de que tentaria me pôr uma coleira foram abandonados. Até os perdoei, por favor a mim mesma, mas nem quero notícias. Quanto maior a distância, melhor.

Fujam dos que querem te transformar a fim de que você seja alguma coisa de que eles precisam. Não se permita ser vítima de um amor ruim - aquele que esmaga.

Um dia desses fiquei colérica. Senti tanta raiva que resolvi até reprimir para não agredir. Três mulheres conversavam enquanto eu me arrumava. Acho que já contei minha mania de escutar a conversa alheia com a finalidade de captar alguma ideia que renda um texto.

Pois bem. Essas três mulheres conversavam sobre os seus namorados ou pretensos maridos. Riam como se estivessem felizes. Como quem tivesse achando bom. Aliás, não riam, gargalhavam e eu atenta para a conversa:

"Meu namorado pega o meu celular e responde minhas amigas como se fosse eu." (hahaha)

"O meu disse que se ele não for ao aniversário de fulana, eu também não irei." (hahaha)

"Já o meu até vai nessa festa, mas deve ficar lá no canto com a cara amarrada." (hahaha)

Parecia um campeonato em que se disputa qual parceiro é mais paranoico. E, por incrível que pareça, elas estavam era gostando de expor os ataques de seus companheiros como se fosse a mais autêntica forma de amor. A carência dessas mulheres-quatis-encoleiradas era tamanha que precisavam provar umas para as outras que eram amadas. Elas estavam escondendo a realidade dentro de si: a realidade de que não eram amadas.

O que ouço de mulher contando os abusos de seus namorados e maridos como se fosse vantagem é assustador. Parece que elas os carregam como troféus para fazerem inveja às amigas e às inimigas. É assim que vejo e sinto. Coitadas! Mal sabem quem são. E esses homens é que não serão os reveladores da natureza dessas mulheres livres que acabaram escolhendo a prisão.

Escolher a prisão é um exercício de liberdade.

Naquele dia, engoli a revolta que me surgiu com a história daquelas mulheres. Engoli não. Disfarcei que engoli e fui viver minha própria liberdade.

Mais tarde, deparo-me com esse texto da Clarice e vejo nele a possibilidade de me revoltar contra aqueles que fazem de tudo para conquistar um amor, mesmo o amor ruim. Contra aqueles que concedem, submetem e aceitam transformar-se em uma coisa qualquer, numa indefinição.

Aqui está o meu protesto contra homens e mulheres que se deixam encoleirar. Esse é o desabafo de quem não permite amarras e nem amarrar.

Esse é o  meu grito, é a minha revolta e é, acima de tudo, o meu silêncio.




































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