O avião que é um bicho e eu que sou uma má pagadora de promessa.
Dias atrás meu irmão mais velho anunciou que faria uma viagem a São Paulo e a primeira preocupação que me veio à cabeça esteve relacionada ao meio de transporte que o conduziria até o seu destino: o avião.
Falei tanto que não continuei a história que havia começado sobre meu irmão.
A volta do meu irmão estava marcada para uma certa data, mas foi adiada. O dia de seu retorno coincidiu com a data de aniversário do nosso pai falecido. Prenúncio? Como sou supersticiosa! Chega a dar raiva.
É que tenho pavor desse bicho. Um pavor sem justo motivo, eu sei.
E vão querer me convencer de que as estatísticas demonstram que é um dos meios de transportes mais seguros do mundo e eu vou responder: "meta as suas estatísticas no bolso e deixa eu cá com o meu medo, porque medo não se discute".
Conheço uma mulher que perde o sono com medo de ser raptada por alienígenas e discos voadores e nem por isso eu tento convencê-la de que ela não tem juízo.
Conheço algumas pessoas que tem medo de baratas, enquanto eu piso nelas com gosto de pisar.
Conheço um homem que tem medo de um tal de Nibiru se chocar com a Terra. E eu digo a ele: "pelo menos vamos todos juntos".
Conheço gente que tem medo de morrer só, como se houvesse outra alternativa.
Tem gente que tem medo de trovões e chuvas fortes. Outros tem medo de não serem amados nem aceitos.
E tem aqueles que têm medo da morte, como se houvesse escapatória.
Enfim, somos seres que muitas vezes se apavora por essa coisa chamada medo. Infundado ou real, ele nos assola.
Como havia falado, o medo de andar de avião me persegue sem que eu saiba porquê. Parece que é algo tão ancestral que não se explica, pois jamais passei por uma situação alarmante que o justifique. Chego a pensar que nasci com ele.
Quando criança e morando numa cidade tão pequena sobrevoada apenas por pássaros, avistar no céu um pontinho luminoso acendia uma esperança de estar diante de um avião e, ainda que muito distante, era uma atração inexplicável que fazia com que os meninos e as meninas parassem quaisquer brincadeiras para correr a avistá-lo, aos gritos: "Olha o avião!"
O barulho de sua passagem confirmava tratar de ser ele mesmo. E quando ele sumia no horizonte
eu ficava pensando:
"Será mesmo que tem gente dentro dele?"
Para mim, ele voava sozinho e sem ninguém, movido por uma força que eu não sabia explicar de onde vinha e sustentado no ar pelo mesmo que sustenta sol, lua, estrelas e planetas. Assim eu pensava.
Hoje sei que tem piloto e passageiros e já fui passageira também. Mas continuo sem entender como ele sobe e permanece nessa imensidão. Como ele se mantém no ar. Então, adulta, a tese é a mesma - ele é sustentado pelo mesmo que sustenta os astros.
Um colega que entende muito de física tentou me explicar tecnicamente o que faz um avião decolar, sobrevoar e aterrissar e enquanto explicava nada se alterava em meu pensamento.
Sou provinciana demais para acompanhar essa modernidade toda. Prefiro acreditar em coisas mais simples, mas que também não me convencem. Até que aceito minha ignorância e deixo de tentar entender.
A última viagem que fiz no bicho foi desesperadora. Nada demais aconteceu. O desespero era todo dentro de mim.
Entrei numa fila para embarque e à medida que aproximava minha vez eu tinha vontade de chorar ou sair correndo do aeroporto. Entrava gente que parecia que não ia acabar mais. E cada passageiro com suas malas. Como que cabe tanta gente e tanta coisa? Como ele ia dar conta de ficar lá em cima com tanto peso? Se quem o segura é o mesmo que segura os planetas que são bem maiores e mais pesados, por que não me consolei?
Porque nunca ouvi dizer que um planeta tenha se espatifado no chão. Agora avião... De vez em quando alguém larga as mãos dele e ele se espatifa todo e quem tá dentro também.
Durante a viagem fiz questão de ficar controlando tudo naquela telinha que aparece pra gente. Qualquer diminuição na velocidade e eu ficava atenta. Quando o piloto freava, eu pensava que o avião perderia as forças e sucumbiria à queda.
Um senhor sentado ao lado roncava que dava gosto de ver e escutar, enquanto eu estava sendo consumida pela ansiedade da chegada e pelo medo de não chegar.
Quando ele acordou, eu puxei papo: "O senhor não tem medo?" Ele: "Não, minha filha. Viajo toda semana e ainda volto hoje a noite para Brasília".
É. Pelo menos ele tinha me chamado de filha e não deixava de ser um consolo.
Fui e voltei sã e salva, mas não desejando entrar nesse bicho de novo.
Falei tanto que não continuei a história que havia começado sobre meu irmão.
Um dia antes dele viajar tive pesadelos horríveis. Sonhei que minha avó materna falecida morria de novo e era preciso providenciar o velório. Perguntei à minha mãe: vai velar na nossa casa ou na dela? Minha mãe disse que não queria velório na nossa casa.
Acordei num sobressalto às três horas da manhã e numa angústia sufocante. Seria algum prenúncio? Quando viva, essa avó era um dos elos mais fortes entre mim e meu irmão.
Pensei logo nele: "daqui a pouco ele vai entrar naquele bicho".
O que eu podia fazer? Rezar. Peguei o terço e rezei fervorosamente. A cada dezena eu repetia desesperada a Deus, a Jesus, à Virgem Maria e a todos os santos existentes no céu e na Terra: "Eu só quero que proteja meu irmão antes, durante e na volta".
Ao terminar, ainda prometi que iria à missa em agradecimento pela salvação dele.
Depois de rezar caí em sono profundo. Como que informada pelo inconsciente acordei cinco minutos antes do meu irmão decolar, a tempo de desejar-lhe uma boa viagem e fazer todas as recomendações necessárias e desnecessárias também.
Deu tudo certo e ele chegou bem a São Paulo. E os dias foram passando e nada de missa. Não que eu tenha deixado de rezar durante esses dias, mas a promessa foi ficando... Eu havia esquecido dela depois do alcance da graça.
Até que ouvi de uma pregadora: "não é porque você fez algo de que Deus não tenha gostado que Ele vai te abandonar". Aí que eu fui ficando mais descansada.
Eu que, altiva, julgara Bentinho (Dom Casmurro) de não cumprir suas promessas estava incorrendo na mesma conduta. Ficava muito claro porque não podia julgar, mas daí esquecia e julgava de novo.
A volta do meu irmão estava marcada para uma certa data, mas foi adiada. O dia de seu retorno coincidiu com a data de aniversário do nosso pai falecido. Prenúncio? Como sou supersticiosa! Chega a dar raiva.
Meu Deus, era dia dele voltar a Brasília e nada de ter ido à missa. Na hora de pedir proteção pelo seu retorno, eu estava envergonhada. Resolvi falar o mínimo já que estava em débito. Calada eu estava errada, mas precisava pedir só mais um pouquinho de proteção ao meu irmão.
"Ah! Proteja ele que não tem culpa das minhas falhas. Depois eu me acerto com o Senhor."
E concluí com um amém baixinho e de olhos bem fechados que era para não encará-Lo.
Tratei de tentar ficar calma durante as horas de viagem do meu irmão. De qualquer modo, por segurança não sei de quem, localizei o voo pela internet e fiquei vigiando até a chegada a Brasília.
Quando ele chegou, mandou uma mensagem avisando e eu disse: "Vejo aqui pelo meu controle que o voo chegou na hora marcada. Eu estava te acompanhando."
Ele deu risada e respondeu: "É. Já que estava me acompanhando, qualquer sinal de que o avião tivesse caído você morreria antes mesmo de mim."
Sim. Eu morreria. Mas não morri porque o avião foi muito bem sustentando pelo sustentador dos astros.
Agora, a promessa foi que não se sustentou. Deus que me perdoe!
Parabéns! Que Deus te abençoe sempre.. Amo Vc! Belo texto.. Detalhe: dormir igual ao senhor dito no texto..rs
ResponderExcluirTambém amo-te! Você dormiu e eu toda acordada, rs.
ResponderExcluir