A salvação não está no funcionalismo público.

No meio da manhã, recebi um telefonema de um leitor dizendo que precisava me ver o mais urgente possível, sob a justificativa de que necessitava me entregar algo para a minha salvação nesse momento difícil pelo qual estou passando.

Sem vislumbrar o que ele queria dizer com "momento difícil pelo qual estou passando", uma vez que não me lembro de ter falado qualquer coisa a respeito, perguntei-lhe se podia me adiantar o assunto.

"Não posso, Ana. É algo muito delicado e não pode ser tratado à distância. Se puder vir, bem. Se não, amém!  E lavo minhas mãos." - respondeu ofegante.

O tom era tão sério que eu não pude deixar ir vê-lo. Saí às pressas, peguei um táxi e fui ao seu encontro.

"Vamos para onde, senhora?" - perguntou o taxista.

"Em busca da minha salvação" - respondi.

"Não conheço esse lugar, senhora. Tem certeza que ele existe?"

"Meu leitor disse que sim".

"Talvez a senhora tenha se enganado. Há vinte anos transito por essa cidade e nunca vi nem ouvi nenhum lugar com esse nome".

"O senhor nunca ouviu falar da Livraria Cotidiano?"

"Ah sim, senhora! Ah sim! É logo ali."

Ao chegar no local combinado, meu leitor já estava à minha espera. 

Nas mãos, ele segurava um pacote e eu imaginei que seria o tal objeto do qual ele havia falado. O objeto que me salvaria.

Sentamos, ele pediu nossos cafés e ficamos por um bom tempo em silêncio. Quando o silêncio começou a me incomodar, perguntei:

"Qual o motivo desse nosso encontro?"

"Ana, você anda lendo umas coisas que eu não considero boas e me sinto na obrigação de alertá-la, pois não gostaria que coisas ruins atingissem você que é tão boa."

"Eu não sou tão boa como você quer me fazer acreditar. Se o fosse, teria conseguido chegar ao fim do único livro de Dostoiévski que tentei ler. Ele está lá na minha estante lido pela metade."

"Você é boa sim. Não merece ler coisas insignificantes."

"Eu também tenho minhas insignificâncias se quer saber e gostaria que as respeitasse."

"Eu te respeito."

"Pois não está parecendo." - disse num tom severo.

"Ana, veja bem, eu tenho mais idade e experiência que você. Já consigo antever o que acontecerá se continuar lendo essas amenidades. Você está em perigo."

"Ah, estou? Vejo que está sabendo mais de mim que eu mesma" - respondi de modo irônico.

"Ah, Ana! Você sempre tão boa e sutil!

Não acreditava no que ouvia e nem entendia de onde ele tirava de minha visível irritação tanta bondade e sutileza. Por dentro, eu pensava ser inadmissível que um leitor quisesse mandar em minhas leituras numa flagrante intimidade e liberdade que eu nunca dei a ele nem a ninguém.

Tive vontade de dizer: "Leio o que quero". Mas gosto tanto dele e o admiro tanto que engoli seus desmandos.

Mudei o tom: "Sim, meu querido, e o que é mesmo que você quer me entregar como objeto de minha salvação?"

"É isso aqui" - e estendeu as mãos me entregando o pacote.

Era um livro de contos do Tchekhov. Aceitei com alegria e nos despedimos. Quando eu já tinha andado alguns passos, ouvi a voz dele a me chamar: "Ana, leia primeiro "A morte do funcionário".

Só a noite eu começaria a ler o livro. E começaria por um conto sobre a morte? Mas não era algo para a minha salvação?

Tive vontade de começar por outros, mas precisava manter minha lealdade perante aquele leitor. Eu havia consentido que leria primeiro "A morte do funcionário".

Assim o fiz...

Ao terminar o conto, percebo que morro junto com o funcionário. E compreendi: a salvação não está no funcionalismo público. 

Antes ele tivesse deixado eu ler amenidades...




















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