Convite

Era acompanhando minha avó que, menina, eu percorria e desbravava os principais cantos da pequena e interiorana Coribe. Mercados, açougues, farmácias, festas juninas com seus leilões e forrós animadíssimos, praças, casas de amigos e de clientes da venda que minha avó mantinha, residências de familiares, a primeira viagem a Goiânia e as missas de domingo.

Ela me levava a todos os lugares que frequentava, de modo que só nos separamos por motivo de força maior, quando, aos quinze anos de idade, recebi a mais triste notícia da minha vida – a de que seu coração não resistira a um infarto.

Amava estar em sua presença, porque queria a proteção que me direcionava, sob o argumento de que eu não desfrutava da presença paterna. Na verdade, era, com muito orgulho, a neta preferida de minha avó.

Ao afirmar isso não intenciono ferir quem quer que seja, nenhum dos outros netos. Todos sabiam de sua predileção mais que explicada e justificada. Se não recebiam dela o que eu recebia é porque a eles fora concedida a sorte de não ter a lacuna e o vazio que eu tinha na alma e que ela, ingenuamente, pretendeu tapar. Mas a verdade é que cada pessoa tem algo que a outra não tem, de modo que cada um tem de lidar com as próprias faltas.

Além do amparo dos meus avós maternos e da minha mãe, havia algo intenso dentro de mim e que também me sustentava fortemente. Desde muito criança, muito mesmo, a crença em Deus esteve tão enraizada no meu ser que parecia fazer parte da constituição de todas as minhas células. Eu rezava todas as noites antes de dormir e conversava com Ele diante de minhas apreensões, necessidades e desejos. E, como num passe de mágica, Ele me respondia, saciava e, quando não, me consolava.

Nunca concebi a inexistência de Deus, nunca a dúvida permeou meus pensamentos, e isso nem se deve a uma relação pessoal de pede-ganha, a partir da qual poderia culminar numa confiança cega. A crença não brotava necessariamente dessa intimidade que estabeleci com o divino, já na infância, e que perdura. É que, em meus pensamentos e sentimentos, o mundo e as coisas eram muito bem ordenados e perfeitos para terem vindo do nada. Tinha porque tinha de haver algo muito maior e superior de onde se originaria tudo e todos. Uma força onipotente, onipresente e onisciente.

No catecismo, essas ideias se fortaleciam com o estudo bíblico. E nas missas que frequentava aos domingos com minha avó também era tomada pela fé, reforçada pela escuta do Verbo que sutilmente penetrava-me.

Mais tarde, morando em Bom Jesus da Lapa, cidade conhecida como a “capital baiana da fé”, em virtude da Gruta do Bom Jesus, pude conviver com uma tia paterna, católica das mais praticantes e fervorosas que conheço.

Ela não me perguntava se eu gostaria de acompanhá-la nos eventos da igreja, apenas anunciava: “Amanhã, às 7, iremos à missa de Santa Luzia.”, “Quarta, às 19, iremos à procissão de Bom Jesus dos Navegantes.”, “Já comprei nossas camisetas do Sagrado Coração de Jesus.”, “Tal dia terá a festa do santo tal”, e todas as missas, procissões e festas de tantos quantos santos existem, lá estávamos. Ia de muito bom grado.

Sempre gostei de frequentar a igreja católica, embora entenda e respeite aqueles que optam por não seguir religiões. A fé, o amor e a caridade podem ser exercidos a qualquer hora e em todos os lugares.

Talvez, a memória afetiva que liga a igreja à minha avó e as experiências decorrentes da presença em eventos católicos contribuam bastante para que continue me dirigindo ao templo.

Nunca enxerguei a instituição com maus olhos, mesmo diante do conhecimento de seu passado de mortes, violências e perseguições.

Os homens costumam se organizar em associações com a aparente intenção de alcançar ideais nobres, e acabam tropeçando e se debatendo uns contra os outros devido à própria ignorância. Mas da mesma forma que há, em todas as localidades, pessoas dispostas a guerrear, há aquelas que se empenham por empreender uma espécie de paz que, se não é a esperada, pelo menos representa um avanço.

Onde há humanos, há conflitos, desentendimentos e interesses escusos. Graças a Deus, a igreja católica vive fase melhor que de outrora. Não podemos pagar a dívida passada, mas a partir de agora podemos deixar de ser perdulários. Afinal, foi Jesus quem nos aconselhou nascer de novo, não repetir a história de sofrimentos e de dores. Enfim, seguir em frente e evitar cometer os mesmos erros.

À medida que escrevo, as memórias imperam e me remetem a um certo domingo. Já em Brasília, ligo a televisão e me deparo com a missa de devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Automaticamente, lembro-me do tempo em que caminhava em procissão pelas ruas de Bom Jesus da Lapa, na companhia de minha tia, em comemoração à solenidade.

Numa dessas ocasiões, ela me presenteou com o que seria o Coração de Jesus, em veludo, que eu colocara na carteira e, mais tarde, perdera. Em decorrência dessa lembrança, prometi-me comprar, no dia seguinte, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, com a fé de que, ao expô-la em minha casa, as doze promessas feitas a Santa Margarida Maria de Alacoque se cumpririam em minha vida:

1) “A minha bênção permanecerá sobre as casas em que se achar exposta e venerada a imagem de Meu Sagrado Coração”;

2)  “Eu darei aos devotos de Meu Coração todas as graças necessárias a seu estado”;

3) “Estabelecerei e conservarei a paz em suas famílias”;

4) “Eu os consolarei em todas as suas aflições”;

5) “Serei refúgio seguro na vida e principalmente na hora da morte”;

6) “Lançarei bênçãos abundantes sobre os seus trabalhos e empreendimentos”;

7) “Os pecadores encontrarão, em meu Coração, fonte inesgotável de misericórdias”;

8) “As almas tíbias tornar-se-ão fervorosas pela prática dessa devoção”;

9) “As almas fervorosas subirão, em pouco tempo, a uma alta perfeição”;

10) “Darei aos sacerdotes que praticarem especialmente essa devoção o poder de tocar os corações mais endurecidos”;

11) “As pessoas que propagarem esta devoção terão o seu nome inscrito para sempre no Meu Coração”;

12) “A todos os que comunguem, nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, darei a graça da perseverança final e da salvação eterna”.

As reproduções de imagens em si não são os objetos de adoração. É óbvio que não se está clamando em nome de um pedaço de madeira ou outro material de que são feitas. Vejo-as como algo que nos remete e nos traz à lembrança quem se quer sentir por perto. É como quando temos saudade de alguém que amamos e olhamos sua fotografia a fim de reavivar aquela presença em nós.

Então, na manhã de segunda-feira, me dirigi ao trabalho. Provavelmente já esquecera que teria de ir comprar a imagem, conforme concebido durante a emoção do dia anterior; mas eis que decido dar uma volta pelo térreo da empresa e, para a minha surpresa, vejo que está acontecendo uma exposição de imagens católicas. Mais surpreendente ainda foi avistar uma linda e única figura do Sagrado Coração de Jesus, que me fez aproximar boquiaberta e incrédula: “É para vender, moça?”

Era.

Comprei.

Não seria coincidência. Como deixar de acreditar que o pensamento do dia anterior de adquirir a imagem não tivesse ligação com aquela exposição? Em treze anos de ofício, foi a única vez que presenciei algo do tipo nas dependências da empresa. A partir daí, passei a me autointitular devota do Sagrado Coração de Jesus e sempre o mantenho exposto em minha casa.

Anos transcorreram entre o que acabo de contar e a mais recente experiência igualmente digna de nota. Ao assistir uma conversa entre um cientista e uma filósofa, Tereza D’Ávila é citada pela riqueza do que produziu a partir de sua experiência mística. A menção à santa faz que me lembre de ter um livro escrito por ela, mas que permanecia intocável desde o momento em que o adquiri.

Paro de ver ao programa a fim de procurá-lo, e o que encontro de imediato é o “Diário de Santa Faustina”, que começo a ler na mesma hora. Deparo-me com a história de que Jesus apareceu-lhe e a pediu que pintasse um quadro Dele emanando, por meio do coração, uma luz branca e outra vermelha, que representariam respectivamente a água e o sangue. Abaixo da imagem deveria estar escrito “Jesus, eu confio em Vós”. Segundo Santa Faustina, Jesus também lhe dissera para memorarem a Misericórdia divina, por meio de uma festa que deveria ocorrer no primeiro domingo, após o domingo de Páscoa.

Do momento em que comecei a ler o “Diário de Santa Faustina”, que caiu em minhas mãos por “mera coincidência”, estava há dois dias do domingo seguinte ao da Páscoa. Pensei: “Mas isto é um chamado de Jesus para mim. Preciso ir a essa festa.”

No dia 24 de abril de 2022, às 15 horas, lá estava na Catedral Militar Rainha da Paz para adorá-Lo e honrar-Lhe o convite.

Contei o episódio a um amigo ateu ou agnóstico (ele ainda não se decidiu), que me interpelou: “Mas que provas você tem de que foi Jesus quem lhe direcionou a mensagem?”

Pois é. Fé não se prova. Sentimentos não se explicam. Apenas caminho ao encontro daquilo em que acredito, sem dúvidas ou questionamentos.

Para mim, eu estava na Catedral diante de Jesus Misericordioso por acreditar que Ele mesmo houvera me levado até ali. Ao fim da solenidade, fui consagrada à misericórdia divina num absoluto ato de fé.

A palavra misericórdia origina-se do latim: miseratio, derivado de miserere, que significa “compaixão” e cordis, derivado de “cor”, “coração”.

A fé não é racional, nem cartesiana ou matemática. Fé é agir de acordo com o que o coração dita e impele. É “crer para ver” e não “ver para crer”. É acreditar que o “impossível” pode se revelar.

Portanto, não posso dar provas de certezas íntimas, das coisas que brotam do cuore. Posso apenas contar minhas experiências e continuar acreditando na presença de Jesus em minha vida sem que, para isso, precise tocar suas chagas com as próprias mãos.

 


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