Salto 15
Sou uma mulher, embora não compreenda bem o que isso significa. Uma mulher que se dedica às pessoas e às coisas que ama, à leitura, ao trabalho, aos estudos, aos assuntos diversos e que não deixa de destinar momentos da própria vida a certas futilidades por motivos de força maior: a força de ser mulher.
E vaidosa. Em que sentido? Aparência mesmo. Não gosto de estar diante do outro de forma desleixada ou sem me sentir minimamente apresentável, o que passa apenas pelo meu juízo do que seja estar confortável diante daquele que me olha.
Meu ritual inclui cabelos limpos e escovados diariamente, leve maquiagem, ajuste nas sobrancelhas, rímel e batom. Brincando, costumo dizer: Uma mulher sem batom é uma mulher sem futuro. Qual a verdade dessa expressão? Nenhuma, mas batom dá cor ao rosto e à vida. Uma mulher que ao menos pinta os lábios demonstra, até certo ponto, que ainda não desistiu de si mesma.
Mas se tem algo que também não pode faltar de maneira alguma para completar, digamos, o look, é o salto alto. É por que você é "baixinha" que usa esses sapatos? Já me perguntaram bastante. E realmente não sei o motivo de ter começado, uma vez que faz tanto tempo que me utilizo desse recurso que mal posso afirmar quando e por que tudo começou.
Como você consegue? Penso que por questão de costume. Como se pernas e pés se rendessem ao fato de que eu continuaria, mesmo que reclamassem ou tentassem me fazer desistir. Até porque, como diz minha amiga Clarice Lispector, sou daquelas que deseja ir até o fim do que quer. E jamais pensei em desistir de usá-los.
Há uma frase atribuída à atriz Marilyn Monroe: Não sei quem inventou o salto alto, mas todas as mulheres devem muito a esta pessoa. Não sei o que pensam as outras mulheres, quanto a mim, sim, devo a esta pessoa.
Muito mais do que aumentar a altura, os sapatos altos, usados por quem não se torna vítima deles, confere aquilo que chamo feminilidade e elegância. Além do mais, tem o poder de ajustar a postura, tão essencial para lidar com a vida, segundo Jordan B. Peterson.
Sem querer me justificar, confesso: uso salto porque me sinto bem com eles. Fazem parte daquilo que chamo pertence de reforço. Conferem-me o poder de bancar quem sou. Quanto ao tamanho, pouco me acrescenta, já que somos do tamanho do que vemos não do de nossa altura, como ponderou, cirurgicamente, Fernando Pessoa.
E não importa as características ou particularidades do lugar ou da ocasião, para mim, o salto é quase sempre indispensável, salvo raríssimas situações em que ele é totalmente dispensável.
Certo dia, estacionei, coloquei um dos pés para fora e quando saí totalmente do carro, uma voz de homem a me dizer: Você, com esse salto, parece até que está na São Paulo Fashion Week. Mas eu estava era nas ruas cheias de relevo de Bom Jesus da Lapa, sob o sol escaldante de 40 graus. Mesma cidade onde entrei numa loja de sapatos e ouvi da vendedora: Queria tanto usar salto assim como você. Respondi-lhe: Pois então use, mulher! É só calçar e andar. Mas você anda como se nada tivesse acontecendo, retrucou. Porque realmente nada está acontecendo, foi o que lhe disse. Ou uma colega de trabalho que veio me contar: Quando te vi ao meio dia andando pelas calçadas com aquele salto preto altíssimo e brilhoso, pensei: Quem é essa mulher? E o que ela está fazendo aqui?
Mas o melhor mesmo foi o bilhete que recebi de uma amiga: Se nem os paralelepípedos de Bom Jesus da Lapa venceram seu salto 15, o mundo é todo seu! Bem que gostei dessa frase inesquecível que vou levar para a vida.
Uma hora ou outra ouço alguém me interpelar: Como você consegue? Suas pernas não doem? Não corre o risco de ter problemas na coluna? Cuidado viu! Quando era mais nova, usava muito esses saltos aí. Antes de ser mãe, vivia num salto desse. Desisti disso, agora só uso rasteiras e sapatilhas. Por que não calça sandálias mais baixas? Daqui um tempo não vai dar conta de usar sapatos tão altos.
Acontece que, certo dia, pareceu que deveria mesmo dar adeus aos meus sapatos. Do nada, fui acometida por uma dor aguda no dedão do pé direito. Durante uma semana, ao deitar para dormir, sentia como se alguém aparecesse rigorosamente no mesmo horário para puxar meu dedo. Meu Deus! Que coisa mais estranha! Que dor sem cabimento! Mas logo pensei que era causada pelo uso do salto, uma vez que o peso do corpo acaba se concentrando nas pontas dos dedos.
Lembrei-me dos estudos de Mesmerismo e Física Quântica, passava as pontas dos dedos das mãos no dedo adoentado do pé e mentalizava: Está sadio e perfeito! E aproveitei para pedir ajuda ao Poderoso, já que nada custa: Ah meu Deus! Que vergonha do que vou Te pedir. Como ouso me dirigir ao Senhor dos senhores para tal disparate. Mas sabe o que é? Ai que vergonha! É assim: meu dedo do pé está doendo muito e eu acho que é por conta dos meus sapatos altos, mas não posso ficar sem eles. Parece coisa de gente que não tem o que fazer, mas assim, colabora comigo. Ai que vergonha! Sou tão fútil e boba!
Só sei que a dor sumiu como num passe de mágica. E cá estou escrevendo essa bobagem com salto 15 nos pés e com a esperança de chegar à velhice da mesma forma que uma inteligentíssima professora de Direito.
E olha que meu desejo nem é o de me igualar a ela em relação aos conhecimentos de sua cabeça brilhante, mas apenas de alcançar os 80 anos como a vi chegar: dando voltas e mais voltas pela sala de aula com seu scarpin de salto alto e fino. Plena, pleníssima!
Vc já nasceu com essa elegância filha, de saber andar de saltos 👠
ResponderExcluir