...não se reprima...
Numa explanação acerca de assuntos que orbitam o ser humano, ou melhor, que são intrinsecamente humanos, a filósofa e psicanalista Viviane Mosé declara que nós não sofremos pela falta de alguma coisa, como afirmou o neurologista e psicanalista Sigmund Freud, pelo contrário, nós sofremos de excesso de nós mesmos.
Segundo ela, aí mora a sua divergência central com o pai da Psicanálise.
Muito pensei sobre essa reflexão profunda que aos poucos se mostrou reveladora. Nietzschiana como é, ao discorrer sobre o excesso que nos é próprio, que está falando Mosé senão a respeito da vontade de potência formulada pelo filósofo Friedrich Nietzsche?
"O mundo visto de dentro, o mundo determinado por seu 'caráter inteligível' - seria justamente 'vontade de potência' e nada mais."
Na contramão de Charles Darwin que postula que o homo quer conservar-se ou adaptar-se para sobreviver, Nietzsche afirma que o homem quer se expandir, dominar, criar valores e sentidos próprios, na qualidade de sujeito ativo no mundo que desenvolve as próprias condições de potência.
A escritora Clarice Lispector também intuiu o poder que habita o humano como se apreende num trecho em que se interroga: "Que faço para não usar esta onipotência que me toma? O que me direi eu? Senão a verdade, a verdade."
Se, para Freud, a falta é o que temos de mais elementar, para Nietzsche, somos seres potentes e transbordantes cujas forças precisam ser direcionadas para a criação e a superação de nós mesmos.
É sabido que Freud contribuiu de modo fundamental ao teorizar o inconsciente, essa instância psíquica que contém memórias, vivências, experiências, traumas, percepções e tudo o mais que nos constitui enquanto sujeitos, desde o momento de nosso primeiro suspiro, e que fica armazenado num local submerso pouco acessível, mas latejante.
O inconsciente se deixa revelar por meio de manifestações, a exemplo dos sintomas, consequência do recalcamento de nossas pulsões e desejos primitivos.
É para conter a atividade pulsional do id que o superego atua com suas proibições, normas e repressões, deixando para o ego ou eu a tarefa árdua de mediar aquilo que desejamos e aquilo que a sociedade ou o outro tolera e permite. É o ego quem cria os mecanismos de defesa.
Sabe quando a gente finge alguma coisa só para agradarmos ou para sermos aceitos, amados, admirados ou para não sermos rejeitados? Então, é o ego atuando para nos defender daquilo que supomos que vai nos fragilizar, macular ou desestruturar.
Se levarmos em consideração a figura que mais se utiliza para representar o psiquismo humano, qual seja, o iceberg, onde a parte extensa e submersa representa o inconsciente, e a parte visível o consciente, será preciso admitir que há um excesso que nos constitui e que se acumula ao longo de toda a nossa vida.
O que fazer com esse excesso de nós mesmos que fica guardado ou reprimido à custa de nossos impulsos ou espontaneidade? Escrever, pintar, criar, superar-se, ou como brinca seriamente a canção
"canta, dança, sem parar; sobe, desce, como quiser; sonha, vive, como eu; pula, grita; não segure muito teus instintos porque isso não é natural; sai do sério, fala alto, dá um grito forte quando queira gritar; é saudável, relaxante, recupera e faz bem à cabeça; por isso canta, dança, grita; vá em frente, entra numa boa porque a vida é uma festa; não controle, não domine, não modere; tudo isso faz muito mal; deixe que a mente se relaxe; faça o que mandar o coração; por isso canta, dança, grita; não se reprima, não se reprima, não se reprima, pode gritar; não se reprima, não se reprima, não se reprima; dança, canta, sobe, desce, vive, corre e pula como eu! como quiser; chega de fugir, de se esconder; e de deixar a vida pra depois como se tivesse o tempo inteiro; o tempo corre, nada vai te esperar; entra de cabeça nos teus sonhos; só assim você vai ser feliz; por isso canta, dança, grita; não se reprima, não se reprima, não se reprima; pode gritar."
A que essa música nos convida senão a extravasar e colocar para fora esse excesso de nós que nos aniquila? Essa força contida que nos sufoca?
O que Nietzsche percebeu é que a vida é muito maior do que a civilização. Esta representa a tentativa humana de um constructo capaz de possibilitar a convivência em sociedade. Só que, ao que parece, pesamos a mão e criamos amarras e prisões, por vezes, esmagadoras. É como se tivéssemos caído em nossas próprias armadilhas.
Enquanto a vida exige expansão e expressão, a civilização quer conter e reprimir o próprio homem muito além do que seria suficiente para uma vivência social que se pretende possível. Por consequência, nos vemos acorrentados, adoecidos e insurgimos contra o excesso de proibições que nós mesmos criamos.
A ciência moderna comprova o pensamento do filósofo "dinamite" no sentido de que há abundância em nós. Tudo o que existe é constituído de átomos com suas partículas, inclusive os humanos.
Quando os físicos calculam os valores das massas que as partículas devem possuir, diz o físico Osny Ramos, esses valores são muitíssimos maiores que os medidos. Para onde vai esse excesso de energia que nos constitui? Se a massa medida da partícula é por demais inferior ao que deveria ser, o que é feito de toda essa energia que "sobra"?
Osny Ramos conclui que há um excesso de poder em cada ser humano, um excesso de massa oculta em alguma dimensão desconhecida do homem e um excesso de energia no homem que pode explicar a capacidade de transcender as coisas e de transcender a si mesmo. Ele diz: "O ser humano é algo maior do que ele fenomenicamente aparenta ser."
Daí o conceito nietzschiano de super-homem como aquele que é capaz de se utilizar do excedente de suas forças para superar-se. Superar, inclusive, essa mania de se supor menos do que se é.
E me ocorre utilizar-me do excedente de minhas forças para supor que, talvez, a frase "todo excesso esconde uma falta" deva ser reelaborada para "toda falta decorre do medo de assumir e de bancar o próprio excesso".
Assumir e bancar o próprio excesso é um convite para expressar e expandir o próprio ser.
A pergunta é: Você tem coragem?
Caso não tenha, que tal começar a ter?
Por isso canta, dança, grita e... não se reprima...
Filha abençoada inteligente 👏🏻👏🏻❤️
ResponderExcluirObrigada, mamis. Te amo!
ExcluirQue texto maravilhoso Mama, muito perspicaz.
ResponderExcluirQue texto espetacular! Muito esclarecedor e provocante!
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