Você também é carente.
A conversa girava em torno de como criar os filhos, de como conviver com pessoas muito diferentes de nós, das oportunidades profissionais que vêm e vão embora se não as agarramos, das pessoas que não tomam rumo na vida, dos que fazem fofocas e se intrometem na vida alheia, do avião que sobrevoava o local, dos lugares onde nos sentimos bem a ponto de querermos voltar e do jantar que estava estupidamente delicioso.
Então, eu disse:
"Pessoal, por falar nesses lugares que são tão bons, acredita que foi por causa de um desses que eu descobri que sou carente?"
"Pessoal, por falar nesses lugares que são tão bons, acredita que foi por causa de um desses que eu descobri que sou carente?"
"Como assim? Você carente? Em outras vidas né?" - todos riram e interrogaram quase num só coro.
"Claro que não. Nessa vida mesmo." - respondi.
Para os meus amigos, não revelei os pormenores dessa descoberta . Já para vocês, meus leitores, estou aqui toda transparente e despudorada para declarar que tenho lá minhas carências.
Estava passando por uma dessas quadras da capital e avistei um local cujo nome é Gentil. Logo, descubro que, além de ser gentil, serve café. Pensei: "é aqui mesmo que vou ficar, afinal que lugar tem café e gentileza juntos?" Assim, procurei um jeito de estacionar o carro e me dirigir até lá.
Ao entrar, um garçom veio em minha direção e cumprimentou-me: "Boa tarde, senhora. É a primeira vez que vem aqui, estou certo?"
"Ah sim, você está certo. Eu vim pelo nome."
"É o que senhora?"
"Eu vim porque gosto muito de um lugar onde eu possa ler um livro e tomar um café."
"Então a senhora está no lugar certo. Onde pretende se sentar?"
"Pode ser numa cadeira mesmo moço."
"Como senhora?"
"Eu quis dizer, num lugar mais reservado, onde eu possa ler meu livro."
Indicando o local, ele se prontificou: "Então pode me acompanhar até ali."
Sentei, ele me apresentou o cardápio e pedi o café.
"A senhora quer que reduza o volume do som? Não está atrapalhando sua leitura?"
"Sim, pode reduzir, por favor."
Quis tratá-lo com igual gentileza para lhe demonstrar que a pessoa que ali estava era muito digna de frequentar aquele lugar.
Passado algum tempo, ele retorna.
"A senhora está precisando de mais alguma coisa?"
Fiquei pensando em dizer-lhe tudo aquilo de que eu precisava, tamanha gentileza ele transmitia. Será mesmo que ele seria capaz de me dar tudo o que necessito?
"Ah sim, moço. Eu preciso que me compreendam, que não me obriguem a fazer o que não gosto, que não queiram mandar em mim, que me deixem livre. Preciso também de mais dinheiro, de amigos, de um trabalho melhor, preciso de um tempo para me dedicar ao ócio e ao nada. Preciso chegar em casa e ter comida pronta, casa arrumada, marido sem estresse e cheio de amor para dar. Preciso de segurança, proteção, atenção, cuidado, zelo, amor. Preciso de massagem no ego, que me digam que sou feita à imagem e semelhança de Deus e por isso sou grande e importante. Preciso de minha mãe, dos meus irmãos. E preciso de silêncio. Preciso de tantas coisas..."
Eu não disse nada disso. Apenas pensava enquanto o garçom esperava por resposta.
Ai dele se soubesse a lista infindável de minhas necessidades!
Quis poupá-lo:
"Não preciso de mais nada. Obrigada. Traga a conta, por favor."
Paguei a conta e fui embora pensando no que responder a uma pessoa que tem a coragem de nos perguntar o que precisamos, mesmo diante do risco de se obter uma resposta sem fim.
"A senhora está precisando de mais alguma coisa?"
Fiquei pensando em dizer-lhe tudo aquilo de que eu precisava, tamanha gentileza ele transmitia. Será mesmo que ele seria capaz de me dar tudo o que necessito?
"Ah sim, moço. Eu preciso que me compreendam, que não me obriguem a fazer o que não gosto, que não queiram mandar em mim, que me deixem livre. Preciso também de mais dinheiro, de amigos, de um trabalho melhor, preciso de um tempo para me dedicar ao ócio e ao nada. Preciso chegar em casa e ter comida pronta, casa arrumada, marido sem estresse e cheio de amor para dar. Preciso de segurança, proteção, atenção, cuidado, zelo, amor. Preciso de massagem no ego, que me digam que sou feita à imagem e semelhança de Deus e por isso sou grande e importante. Preciso de minha mãe, dos meus irmãos. E preciso de silêncio. Preciso de tantas coisas..."
Eu não disse nada disso. Apenas pensava enquanto o garçom esperava por resposta.
Ai dele se soubesse a lista infindável de minhas necessidades!
Quis poupá-lo:
"Não preciso de mais nada. Obrigada. Traga a conta, por favor."
Paguei a conta e fui embora pensando no que responder a uma pessoa que tem a coragem de nos perguntar o que precisamos, mesmo diante do risco de se obter uma resposta sem fim.
Porque a verdade é que somos todos muito precisados.
Passados alguns dias, voltei ao local. Estava num daqueles momentos em que precisava de café e atenção. Quando cheguei, veio outro garçom, igualmente gentil:
"Quanto tempo, senhora. Sentimos sua falta."
Abri um sorriso e disse: "Isso é um bom sinal. É que andei muito ocupada, mas estou de volta."
Novamente se deu aquela sessão de gentileza e passei a comparecer a esse lugar com frequência.
Numa dessas idas, reclamei com o garçom da falta de internet no meu celular, que estava descreditado (sem crédito) tanto quanto eu estava desacreditada de conseguir qualquer conexão. Ele me passou a senha do wifi e nada.
Falei: "Tudo bem. Eu precisava de internet, mas já que não tem, vou ler meu livro sem interferências."
Na verdade, eu nem estava precisando de nada. Mas, o hábito nos robotiza tanto que de tanto falarmos diariamente de nossas possíveis necessidades, nos convencemos de que elas são reais.
Ocorre que a gentileza naquele lugar não tem limites. Ele tirou do bolso o próprio celular e disse:
"Senhora, eu tenho acesso à internet aqui no meu celular. Se a senhora quiser, eu posso rotear. Deixo meu celular na sua mesa."
Minha reação foi de espanto e incredulidade. "Como assim? Claro que não. Imagina se vou querer que você faça isso. Obrigada! Mas, não precisa. Obrigada!"
Ele insistia:
"Não vejo problema nenhum. Para mim, tudo bem. Posso deixar meu celular aqui com a senhora. Aceite."
"Olha moço, eu não posso aceitar. Na verdade, eu nem estou precisando de internet. Muito obrigada."
Ele aceitou minha negativa e concluiu: "Se mudar de ideia, a senhora pode falar."
Eu: "Você é muito gentil e faz jus ao nome do local."
Ele: Tem que ser!
Pelo que entendi, ser gentil ali é uma questão de obrigação.
Por que neguei algo que disse estar tão precisada? Por que estava criando necessidades inexistentes? A nossa pobreza é tão extrema que, mesmo tendo muito, queremos mais. E nisso não percebemos quão miserável somos.
Foi preciso me deparar com uma gentileza sem tamanho para ficar frente à minha pequenez. Não a pequenez do corpo, mas da alma, a pior que pode existir.
Por isso somos tão carentes, porque criamos faltas em excesso, porque mesmo estando cheios de tudo, dizemos que não temos nada. Porque transformamos todas as nossas angústias em necessidades.
À medida que fui escrevendo esse texto, fui ficando com muita fome. Neste momento, careço de comida. A fome é urgente. E a comida, uma necessidade real.
Só quero agora é saber quais de minhas fomes devem ser saciadas para eu continuar a viver e quais aquelas que eu crio para poder me matar.
No mais, precisamos é saber lidar com essa angústia humana milenar que nos faz tão carecidos.
Aí vocês podem me perguntar: Como?
Bem, e vocês acham que se eu soubesse como ainda estaria frequentando o Gentil atrás de atenção e de café?
De qualquer maneira, se vocês descobrirem antes de mim, não deixem de me contar. Eu careço dessa informação tanto quanto careço de pão. E é muito urgente!
Por isso somos tão carentes, porque criamos faltas em excesso, porque mesmo estando cheios de tudo, dizemos que não temos nada. Porque transformamos todas as nossas angústias em necessidades.
À medida que fui escrevendo esse texto, fui ficando com muita fome. Neste momento, careço de comida. A fome é urgente. E a comida, uma necessidade real.
Só quero agora é saber quais de minhas fomes devem ser saciadas para eu continuar a viver e quais aquelas que eu crio para poder me matar.
No mais, precisamos é saber lidar com essa angústia humana milenar que nos faz tão carecidos.
Aí vocês podem me perguntar: Como?
Bem, e vocês acham que se eu soubesse como ainda estaria frequentando o Gentil atrás de atenção e de café?
De qualquer maneira, se vocês descobrirem antes de mim, não deixem de me contar. Eu careço dessa informação tanto quanto careço de pão. E é muito urgente!
Sua carência, quando lhe conheci, era a de saber se escrevia bem e você mesmo respondeu para mim e para si, numa madrugada, que suas letras são divinas e assim me conquistou.
ResponderExcluirE nem pense que essa carência foi dissipada. Esse texto só foi publicado depois que minha mãe deu o aval. Obrigada pelo elogio, careço deles, rs. Feliz em tê-lo como leitor. Beijos.
ExcluirAdorei!
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado. Beijos.
ExcluirGrande reflexão! Gosto de textos que acrescente na minha jornada, no meu cotidiano. Que nos chamem atenção a coisas aparentemente "sem importância " como por exemplo a gentileza. Um simples gesto trás impacto na vida do próximo.
ResponderExcluirQuantas coisas achamos que precisamos naquele determinado momento, mas que na verdade é apenas um costume.
Amei!! Obrigada por mais esse "despertar".
Lorrane, fico feliz em saber que esse texto te provocou um "despertar". Obrigada. Você é uma leitora muito querida. Beijos.
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