Das vantagens de ter um cão.

Preciso contar a vocês o que aconteceu nesse domingo.
Acordei, li durante as primeiras horas da manhã, fui à academia, missa das onze, almocei e, como de costume, parei num lugar para ler meu livro e tomar um café.

O livro era "A negação da morte", de Ernest Becker, e o trecho em que me debruçava com toda atenção e interesse é aquele em que o escritor fala sobre uma das diferenças existentes entre os "animais inferiores", não dotados de consciência, e os homens, animais conscientes.

"O conhecimento da morte é reflexivo e conceitual, e disto os animais são poupados. Eles vivem e desaparecem com a mesma ausência de reflexão: uns poucos minutos de medo, uns poucos segundos de angústia, e tudo está acabado. Mas levar uma vida inteira com o destino da morte assediando os nossos sonhos e até mesmo os dias mais ensolarados... isto é outra coisa."
Com isso, Ernest Becker estava dizendo que os animais irracionais não têm consciência da morte e nós, humanos, temos.

Depois de ler esse parágrafo, olhei fixamente para um jardim que tinha na minha frente e me coloquei a refletir. Pensava comigo: embora tendo consciência dessa minha finitude, prefiro mesmo ter nascido humana. Tudo bem que os animais não se sabem finitos, mas também não podem raciocinar e ler um livro tão interessante quanto esse; também, os animais não podem compor músicas, pintar quadros, aprender os passos de uma dança, inventar e criar milhares de coisas. E o que é mais importante, os animais não podem imaginar um Deus bondoso e poderoso, criador de tudo.

Pensando assim, eu me desligara de tudo o que estava acontecendo ao meu redor. Naquele instante, eram só meus pensamentos e eu.  Até que fui voltando aos poucos daquela reflexão para a realidade do ambiente.

Escutei ecoar um latido e olhei para ver se era algum cão que estava ali perdido no local. Não tinha cachorro algum.
Daí percebi que o latido vinha da mesa ao lado, onde algumas pessoas falavam de seus companheiros ou filhos cães imitando-os com gestos e latidos.

Sem os fitar, direcionei toda a minha escuta para aquela conversa dos meus vizinhos de mesa.

"O meu cachorro late assim au, au,au." Eu pensei: "acho que todos os cachorros do mundo latem assim. Nunca ouvi nenhum latir miau."

"O meu é muito educado, não faz pipi em qualquer lugar. Quando ele quer "fazer suas necessidades básicas", olha para mim com o olhar que eu já conheço, então eu o levo para um local onde ele possa preservar a sua intimidade."

"Vocês precisam ver o meu. Não dá moral para ninguém. Quando chega alguém por quem ele não simpatiza, rosna para a pessoa. Ele é muito verdadeiro."

"Ah, por isso que você o escolheu né?"

"Sim. Desde o primeiro dia, quando o olhei, senti muita verdade em seus olhos, gestos e latidos."

"Nossa, gente. O meu adora passear. E, quando chega domingo, ele acorda e fica na porta do meu quarto esperando que eu levante para levá-lo ao parque."

"O meu também adora um passeio, principalmente na rua que fica duas abaixo do nosso apartamento. É que lá tem algumas cadelas e ele gosta muito de paquerar."

Eu, que não sei quase nada do mundo dos cães, fiquei muito interessada em saber o que esses animais "pensam". Se realmente esses cães fazem tudo o que seus donos dizem, então Ernest Becker estava totalmente enganado quando disse que só os humanos têm consciência.

Só que não!

Quis voltar a ler o livro. Sem sucesso. Um novo pensamento me consumia. Tentava refletir e chegar a uma resposta sobre o que levam as pessoas a passarem uma tarde toda disputando o título de dono ou pai ou mãe do melhor cão. O mais educado, o que late mais alto, o mais namorador, o mais amigo, o mais forte, o mais valente e tantos outros mais... Tudo de bom e superlativo, porque parece que os cães não têm defeitos, só coisas boas.

Enfim, pareceu-me que a vida dos cães está muito mais interessante e digna de atenção do que a nossa vida humana.

O engraçado é que, por ter esse costume de ouvir as conversas dos que sentam ao meu lado, quando os ouço falar de gente, de humano, dos seus, é muito difícil escutá-los enaltecendo as qualidades de seus pares. Geralmente, é uma fofoca sobre um colega de trabalho, uma reclamação do chefe, um conflito familiar, uma crítica dos que lhes são próximos.

Nunca ouço nessas conversas de bares, restaurantes e cafés, algo do tipo: "fulano é bacana demais", "beltrano é pau-pra-toda-obra", "sicrana é bonita, inteligente e, ainda, gente boa." Não. Nunca ouço nada desse tipo.

Sei que é mais fácil conviver e amar os cães, porque eles latem sim, mas não nos contestam e nem discordam de nós. Adestrar um cão é muito mais fácil que adestrar um homem.
Ter um cão como filho é uma maravilha, porque os cães só comem, bebem e dormem. Ninguém precisa ensinar a um cão que ele deve ter caráter e honestidade.  E se mordem, seus pais não precisarão levá-los ao divã, muito menos visitá-los na cadeia. Eles são o que são e todo mundo aceita.

Os filhos dos homens também comem, bebem e dormem, no entanto, pensam, retrucam, divergem, brigam e não fazem tudo o que seus pais esperam deles.

Os filhos dos homens carregam suas cruzes que obrigam seus pais também a carregarem junto com eles. Já os filhos-cães não fazem nem ideia do que é uma cruz.

Clarice Lispector, que me parece não ter deixado de falar sobre um assunto sequer, disse sobre seu cachorro Ulisses:

"E quando acaricio a cabeça do meu cão, sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique."

Aí está todo o motivo que nos faz amar tanto os cães e dedicar toda uma tarde falando deles.

Essa reflexão até me fez mudar de ideia quanto ao que eu havia dito sobre preferir ser humana, porque ser humana tem lá suas vantagens, como por exemplo, a vantagem de poder ler um livro, pintar um quadro, compor uma música e etc e tal.

Já não acredito mais nisso. Acho que o bom mesmo é nascer no corpo de um cão, receber todo o amor que eles recebem e que os humanos tanto aspiram e morrer em paz sem nunca ter despertado ódio, inveja ou indiferença em alguém.

Ah, e também deve ser muito bom nascer num corpo de um cão, porque o que lhe é dado não tem inscrito a cláusula do retorno, é tudo de graça, sem essa necessidade de troca que nós humanos impomos para tudo, inclusive para amar.

O que estraga nossa doação para com os humanos é que ela não é pura e simples. Ela exige essa tal de reciprocidade.









Comentários

  1. Que texto lindo, os cães merecem todo amor e carinho que temos justamente por não poder fazer "benefícios" tais que nos seres humanos podemos fazer e eles não.

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  2. Como sou defensora dos mesmos...mais precisamente no controle de natalidade, exatamente para que eles possam ter um lar humano, e não fiquem perambulando pelas ruas, a fucar lixo e serem maltratados, pela adversidade natural a espécie, ou pelos homens "desumanos". Parabéns pela intertextualidade.... Amei!!!

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    1. Obrigada, tia Juçara. E parabéns também pelo seu trabalho que é muito importante. Beijos.

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  3. Sou apaixonada por cães. Eles nos ensinam muito quanto ao amor. Mas ser humano é uma dádiva, pois são tantos dilemas... sentimentos... metas que nos envolve, que nossa jornada na Terra parece ter sentido e a torna interessante.
    Minha opinião 🤷‍♀️.

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