Filosofia do Cotidiano, de Luiz Felipe Pondé.

"Sócrates dizia que uma vida não pensada não vale a pena ser vivida". É com essa frase que Pondé inicia seu livro sobre filosofia do cotidiano.
A palavra filosofia tem origem grega e compõe-se de dois termos: philos ou philia, que quer dizer amizade ou amor; e sophia, cujo significado é sabedoria ou saber. Portanto, filosofia tem o sentido de amor ou amizade à sabedoria.

E o que vem a ser sabedoria? É o conhecimento aliado à prática dele. Por exemplo: o fogo queima. Quando, mesmo conhecendo isso, colocamos a mão no fogo, temos o conhecimento, mas não a sabedoria. Quando conhecemos isso e, por conhecer, não colocamos a mão no fogo, estamos agindo sabiamente. Sabedoria, portanto, pode ser resumida com a seguinte fórmula: conhecimento + prática. Lembrando que essa prática não constitui necessariamente numa ação, pode também ser uma omissão, como "não colocar a mão no fogo".

Já ouvi muitos falarem que não gostam de filosofia, que filósofos, em geral, são malucos e vivem no mundo da lua pensando em coisas complicadas e sem respostas. Ledo engano!

Os filósofos sempre se debruçaram sobre questões como essas: "De onde viemos? Por que existe o universo? Há mesmo o Bem e o Mal? Devo buscar uma vida honesta? Vale a pena ser bom? Como é a vida após a morte? Os deuses existem? E se existem, têm um plano para nós? O que é uma vida política justa?"

Entretanto, "Filosofia do Cotidiano" não foi escrito para abordar essas grandes indagações. O livro é "um pequeno tratado sobre questões menores", mas não menos importantes para nossa vida. É uma proposta para viver o dia a dia com sentido, responsabilidade e por que não prazer? Enfim, para sermos menos banais, uma vez que "a banalidade na vida é uma forma de ácido que corrói, reduzindo o cotidiano ao vazio."

Não que a vida não tenha sua própria dose de banalidade, mas fazer dela o centro de nossas vidas é o mesmo que nos reduzirmos ao nada. E se supomos que não somos nada enquanto não nascemos e depois que morremos, pelo menos enquanto vivemos somos alguma coisa, ainda que não saibamos ao certo o que somos.

Buscar sentido nas pequenas coisas do cotidiano talvez seja uma forma mais rica, bela e agradável de conduzir os dias. "Uma vida filosófica busca esse mundo do sentido. E esse sentido pode estar no detalhe. E, às vezes, vivemos num deserto de sentido. Mas, não pense que sentido é algo abstrato. Não, é concreto como uma pedra, brota dos vínculos concretos que temos com a vida e com as pessoas e com as ideias e os afetos. Sentido não é vazio de matéria humana, jamais" - diz Pondé.

Por que você acorda todos os dias? Já se fez essa pergunta? Se sua vida não está lá essas coisas, "por que ainda não mandou tudo à merda?" O que te dá tesão e o faz despertar?

A maioria de nós acorda porque precisa trabalhar, sustentar a família, levar os filhos para a escola. E a maioria também passa a maior parte do tempo no trabalho sem ao menos entender o que e por que faz o que faz. Pouquíssimos gozam do luxo de trabalharem com o que gostam. E muitos nem sabem do que gostam.

Na era dos modismos, do viver para fora, para as redes e para as selfs, o que as pessoas menos sabem são de si mesmas. O sonambulismo parece ter tomado conta das almas daqueles que zanzam para lá e para cá acreditando em todo tipo de bobagem que as mídias propagam, correndo atrás do vento sem se aperceberem de suas próprias questões, de seus próprios desejos. "O que você legará à humanidade? Sua obsessão com glúten? Sua mesquinhez com a saúde? A ciência econômica da autoestima?"

Será que não está na hora de começarmos a filosofar? Segundo Pondé, "filosofar está mais ligado ao despertar do sonambulismo". Despertar para a realidade que se apresenta cotidianamente, exigindo de nós algum tipo de ação ou omissão, com coragem. Ou você é daqueles que prefere a fantasia?

A fantasia é sempre uma fuga. Buscá-la em detrimento da realidade é a mais autêntica forma de autoengano.

"Toda vez que você confunde a realidade com a fantasia ou com um sonho, você paga caríssima a conta quando desperta." Pondé continua: "A realidade é sempre cruel se você não a reconhece quando ela está diante dos seus olhos."

O enfrentamento da realidade exige um certo amadurecimento. Talvez esse seja o maior problema que nos deparamos hoje. A infantilização em massa de jovens e adultos que parecem não querer sair da primeira turma do jardim da infância. Aventurar-se ao crescimento implica, necessariamente, passar pela dor, pelo fracasso, pelos nãos que o mundo dá, pela perda, pela sensação de impotência e falta de controle frente a muitas situações. Também, pela aceitação do que simplesmente é.


O autor dispara: "(...) a pura e simples recusa do amadurecimento em nome de viver num mundo de fantasias é uma das maiores catástrofes morais, cognitivas, políticas e econômicas que pode se abater sobre as pessoas."

A infância é para ficar na infância. Hoje, as pessoas se negam a crescer e tomar as rédeas da própria vida. Parecem se esquivar de seus desejos e necessidades e depositam sua parcela de responsabilidade nos políticos, no sistema econômico, na religião, ou seja, sempre fora de seu próprio alcance.

Buscar o amadurecimento significa andar na contramão de tudo que está sendo propagado pela indústria da fantasia infantilizante dos adultos e pelas mídias interesseiras e manipuladoras que pregam verdades apenas com o objetivo de obter vantagens ocultas.

Amadurecer significa, ainda, lançar um certo olhar de desdém socrático para coisas insignificantes, supérfluas e mesquinhas que nos oferecem como sendo de grande necessidade e importância. Significa encarar a realidade sem tons que a descaracterize, que a enfeite, impossibilitando que tenhamos condições de ver o que tem que ser visto.

Pondé é categórico e nos propõe uma certa reverência à realidade: "assim como o dinheiro não tolera desaforo, a realidade tampouco perdoa quem não a reconhecer quando ela aparecer diante dos seus olhos."

O amadurecimento, repito, traz dor, frustração e tristeza. "Não se amadurece sem infelicidade e fracasso."

Não há aqui uma apologia no sentido de convencer as pessoas a buscarem o sofrimento. Até porque em algum momento ele chegará até nós, queiramos ou não. Ele achará um jeito de nos encontrar. Aí é que está a questão. Reclamar aos céus? Sucumbir-se a ele? Aceitá-lo? Ou vencê-lo?

Essa matemática não é tão simples assim. No campo dos afetos, por exemplo, há muitas dores, desencontros, traições, decepções. Como diz Pondé, "um afeto ou dói ou é falso".

O problema é que tendemos a ver a dor como algo de ruim a péssimo. A dor pode ser um momento para demonstrar toda nossa força e coragem. Eliminá-la totalmente é o mesmo que eliminar o gosto pela vida. Em certa medida, ela nos faz melhores e mais humildes. O sucesso constante tende a nos brutalizar, a olharmos o outro com altivez e orgulho; a afastar-nos da nossa condição humana de reles criaturas mortais, expulsas do paraíso do Éden.

Ninguém é feliz o tempo todo como faz parecer em suas postagens nas redes sociais. "A obsessão pela felicidade faz de você um chato."

Ninguém está bem o tempo todo, pela simples razão de que somos humanos e temos problemas profissionais, familiares, emocionais, amorosos, financeiros, enfim, de todas as ordens. "O mundo não é um mar calmo de evidências. É um oceano cheio de pequenas tempestades a serem vencidas."

Um dos problemas que mais nos afetam são os familiares. A nossa saúde emocional depende significativamente da qualidade de nossas relações, principalmente as familiares. A família é sim a nossa base e, ainda que muitos a critiquem, principalmente na sua forma patriarcal, ela é palco de nossa atenção, emoções e sentimentos dos mais diversos possíveis, misto de amor e ódio. Sabemos muito bem as consequências advindas da falta de um pai e/ou de uma mãe na vida de uma pessoa. Às vezes, irreversível no curso de uma vida.

Sabe o que observo? Os maiores críticos da família patriarcal são dela provenientes e, ao formarem suas próprias famílias, continuam mantendo o modelo legado pelos pais. É a velha hipocrisia: NÃO À FAMÍLIA PATRIARCAL. Mas, a dos outros, não a minha.

Já aqueles que não tiveram família, quando perguntados do que mais sentem falta, respondem que da família, de pai e/ou de mãe, principalmente.

"Universidade e mídia (aquela pior do que esta) têm produzido conteúdo sistemático contra o conceito de família, defendendo ideias idiotas como "é legal produção independente", quando qualquer um que não seja mentiroso sabe que filhos dão errado quando têm pai e mãe, quanto mais quando só tem mãe."

E os problemas decorrentes da família ou da falta dela se expandem para a sociedade. Falar em sociedade nos remete a uma abstração. Muitas vezes, acusar a sociedade é uma forma de suprimir nossa parcela de responsabilidade sobre as coisas. O que é a sociedade senão uma organização (ou desorganização) formada por todos? Se cada indivíduo isoladamente se esquiva da sua parte, todos esses indivíduos juntos formarão uma sociedade que se esquiva por completo.

A família nos dá solidez. Quanto maior a família, mais brigas, mais aniversários, mais presentes para comprar, mais fofocas, mais casas para visitar."A solidez da vida não advém das ideias que temos sobre ela, mas dos atritos que temos com a realidade da própria vida."

Atualmente, as mulheres já podem optar por ter ou não filhos ou por tê-los em número bastante reduzido. Essa possibilidade de opção decorre de sua inserção no mercado de trabalho, da independência financeira daí decorrente e da própria liberdade de conduzir a vida sem imposições por parte de quem quer que seja.

Esse é um dos motivos pelos quais a família está menos numerosa. Para o autor, "um número menor de filhos implica solidez menor da família. Mais filhos, mais rolo, mais apoio, mais inventário, mais gente no Natal, mais parente, mais gente pra odiar e falar mal. Nada disso implica "felicidade" enquanto tal, mas implica presença de gente na sua vida e na sua morte. No nascimento de filhos e nos enterros."

Ocorre que um percentual significativo desses poucos filhos acabam tendo como herança a infantilização, os medos, as ansiedades e as projeções desses novos pais. Os jovens parecem não estar preparados para os desafios da vida, para a sustentação interna, autonomia e liberdade. Parecem estar perdidos num labirinto de tantas opções, exigências e possibilidades. Principalmente em relação aos "jovens nascidos a partir de 1995, nota-se que estão mais ansiosos, infelizes, inseguros, reclusos e menos ativos".

O número de suicídio, depressão e transtornos psíquicos têm aumentado significativamente entre eles, como prova de que não estão sabendo lidar com as limitações ou falta delas que seus pais e a própria vida lhes tira ou impõe. Também, como um grito de basta ao tédio de uma vida sem sentido e razão.

Aumenta o número de pessoas, inclusive jovens, medicados com antidepressivos e ansiolíticos e, um dos efeitos colaterais destes últimos, é justamente a perda da libido, essencial até mesmo para levantar de manhã, abrir as cortinas do quarto, contemplar a luz do sol e seguir adiante.

A insegurança entre os jovens os impedem de crescer. Pondé elenca os mais importantes marcadores do amadurecimento: morar sozinho, autonomia financeira, manutenção de relacionamento afetivo que passe de um ano e ter filhos.

Sabemos que o número de adultos morando na comodidade da casa de seus pais cresce a cada dia e esse dado é um fator limitante da independência e responsabilidade que, provavelmente, adquirimos mais rápido quando temos que pagar todas as nossas despesas com nosso próprio dinheiro.

A riqueza é um dos fatores que contribui para esse sensação de perdimento, insegurança, ansiedade, infantilização e medo. Imersos em seus quartos cheios de aparelhos eletrônicos e seus smartphones com acesso às redes em tempo integral, os jovens parecem estar perdendo o desejo de ter quaisquer outras coisas. E, muitas vezes, quando decidem por alguma profissão, o faz com a intenção exclusiva de obter mais riqueza ou atender às projeções narcísicas de seus pais.

Esses dias ouvi uma mãe falar com uma filha de aproximadamente dois anos de idade: "filha, você vai ser o que quando crescer? Você vai ser médica, viu? Você vai ser médica e todo mundo dessa família vai ser médico pra ganhar muito dinheiro. Chega de gente pobre."

Visões como essas são fruto de uma sociedade de mercado que "tende a tornar uma sociedade do gozo do dinheiro e do sucesso material acima de tudo."

Esse é um dos motivos pelos quais se escolhe, hoje, a medicina como profissão. Não como uma forma de servir ou ajudar o próximo. Mas, como uma forma de ganhar dinheiro, prestígio e poder. E, para ter na família alguém a quem se possa chamar de Doutor, com D maiúsculo de Deus.

A redução do número de filhos aliado a uma maior expectativa de vida culmina, necessariamente, no envelhecimento da população. Outro problema advém desse fato: a solidão e o abandono dos idosos. Talvez um dos serviços que mais cresçam de agora em diante seja aqueles de entretenimento e lazer para essa classe. Sem falar nas questões previdenciárias.

Só para lembrar que já se fala no Reino Unido em se criar um Ministério da Solidão. Sabe-se lá no que vai dar.

E por falar em solidão, as redes sociais e os sites de relacionamentos parecem intensificá-la, uma vez que o contato virtual não substitui as sensações do encontro, do toque, do olho no olho. Tem-se muitos ao mesmo tempo em que não se tem a ninguém.

O empoderamento e a emancipação feminina também pode ter como consequência a solidão. E aqui eu não estou afirmando que mulheres não devem ser empoderadas, não estou avaliando a solidão decorrente desse fato como boa ou ruim. Creio que a solidão só é ruim quando não desejada. Quando se está só por opção e por gosto de se deleitar perante a própria companhia, a solidão é, como diz Clarice Lispector, um luxo.

Outro fato que pode estar contribuindo para o aumento da solidão é o medo que temos em relação ao outro, um desconhecido. Numa época em que um turbilhão de informações circula por diversos meios, com ênfase em notícias que causam espanto e medo, ficamos inseguros e temerosos de que sejamos os próximos a ter o corpo, o patrimônio e a alma invadidos.

A impressão que se tem devido ao fato de termos amplo acesso à informação e vivermos sob o regime político democrático é de que somos cidadãos mais participativos e contribuímos melhor para a tomada de decisões políticas. Ocorre que essa participação tem sido rasa e infrutífera, como quase tudo que anda vagueando pelas redes. Pondé nos adverte de como esse envolvimento no debate político tem sido tão pobre de repertório e vocabulário quanto os discursos ocorridos nas casas legislativas. Ainda, ouso dizer, pobre até mesmo de sentido.

O autor discorda dos afirmadores de que estamos mais evoluídos. Para ele, estamos mais infantis e incapazes de lidar com os eternos dramas da vida. A falta de amadurecimento é a causa do retardamento contemporâneo. Diante dos nossos aparelhos tecnológicos, das mídias interesseiras, dos apelos publicitários, da mesquinhez e de todo tipo de lixo que se avoluma impedindo-nos de enxergar o óbvio, estamos tão encurvados quanto o australopithecus afarensis, negando o crescimento e a autonomia como quem nega a própria vida.

Pondé aborda essas e outras questões com o seu realismo ímpar. Perspicácia, ironia e lucidez são pontos fortes de sua obra. Não faz rodeios, é direto, contundente, feroz em sua sede de nos acordar para as coisas importantes da vida. Para nos despertar do sonambulismo. Filosofar é a sua arte e ele nos convida a passear por ela, lado a lado. Por que não viver o dia a dia com a sabedoria que nos foi revelada? Por que não pensar a vida?

Filosofar sobre o cotidiano sim, porque são as escolhas diárias que definem nossas vidas e nos diz se vivemos ou não uma vida que vale a pena ser vivida.






































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