Como fui parar hoje num divã.
Há algum tempo recebi alta da psicóloga, entretanto acertamos que, em caso de surgimento de quaisquer eventualidades em que eu tivesse dificuldades de resolver pelas minhas próprias vias, eu daria um grito pedindo socorro para que a gente voltasse a se encontrar.
Quando eu estava numa roda em que a discussão era sobre sessões de terapia, eu dizia com ar de superioridade: "Acredita que minha psicóloga me deu alta?". Numa época em que os problemas psíquicos estão em alta, estar de alta é quase melhor que ganhar o Oscar. Então, eu exibia meu prêmio de modo triunfal.
Acontece que tudo que é bom dura pouco e, passado um tempo desde a alta, senti necessidade de pedir, novamente, ajuda profissional. Assim, liguei para minha psicóloga implorando por socorro. "A coisa tá braba, a coisa tá feia, eu vou estourar. Help! Please!"
Eu que até hoje só havia aprendido de inglês a conjugar o verbo to be, consegui balbuciar mais essas duas palavras em língua estrangeira de tão grande que era o meu desespero. Talvez um pedido de socorro em outra língua soasse mais dramático e eu seria logo atendida.
Deu certo. Chegando lá, já fui encaminhada para a recepção da sala de emergência. Não podia esperar nem mais um minuto sequer, era urgente. Urgentíssimo.
Passado algum tempo de espera, chegou a minha vez. A análise começou logo de cara ao entrar na sala, pois em vez de sentar no local do paciente, já fui logo em direção à poltrona da psicóloga, como se fosse ela a necessitada.
"Não Ana. Vá para o seu lugar."
"Ah é verdade. Então já vou logo dizendo que tenho mania de, ao entrar num consultório, sempre me dirigir à cadeira do médico. Como você explica isso?"
"Você e suas inversões de papéis."
Entendi muito bem do que se tratava, afinal não era a primeira vez que eu me colocava numa posição onde não devia estar.
Também tinha outra explicação. É que eu acho os outros sempre mais necessitados do que eu. Quem sabe os médicos não estavam bem de saúde? Quem sabe se minha psicóloga não estava precisando desabafar? Quem sabe eu não poderia ajudá-los? Aquele velho complexo de herói que nós já havíamos identificado em outras sessões e que me persegue desde o berço. Querer salvar os outros antes de salvar a si própria. Ou seria complexo de Deus? Não duvido de mais nada.
Só que quem estava precisando de ajuda era eu mesma.
Aceitei o lugar que me cabia e sentei na poltrona a mim destinada.
"O que está acontecendo Ana?"
"Olha, eu vim aqui porque não estou sabendo lidar com fulana de tal e contei toda a história..."
Mas, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, continuei:
"Só que no caminho para cá, eu acho que descobri o porquê. Acho que já tenho a resposta. Está relacionado ao meu complexo de herói. Eu achei que poderia salvar fulana, fiz o que pude, mas fulana não reage. Acontece que a não reação dela me veio como um fracasso. Algo que tentei e não consegui. Isso mexe com meu ego, porque ao tentar salvá-la e não conseguir, sinto-me impotente. Então, o problema não é ela. O problema sou eu."
A psicóloga concordou com minha autoanálise e completou:
"Ana, coloque na sua cabeça que você não vai salvar a ela e nem a ninguém. Nesse mundo, a gente precisa tentar salvar a si próprio e olhe lá se conseguiremos. Mãe não salva filho; filho não salva pai; mulher não salva marido; irmão não salva outro irmão, etc e tal. Você entendeu?"
Eu havia entendido isso há muito tempo, afinal de contas, quando cheguei lá já tinha feito toda a análise da situação e chegado à conclusão de que não posso salvar a ninguém.
Vocês já devem saber que quando uma pessoa está se afundando, o desespero dela e o instinto de sobrevivência são tão grandes, que se alguém estender as mãos para puxá-la é capaz de ir junto e se afundar também.
Assim somos nós quando queremos salvar quem já negou a si a própria salvação.
Conversamos sobre mais algumas coisas, demos risadas e eu saí de lá sem o peso da cruz dos outros nas costas, mais leve, menos encurvada. Cada um já tem a sua própria cruz. Por que insistimos em carregar a do outro?
Ao carregar a minha própria cruz, eu me mantenho ereta, firme e adiante, porque sei muito bem identificar e combater as causas dos meus desalentos.
Sei também que há vazio e angústia em todos nós, provenientes da nossa condição humana de criaturas impotentes, diante dos infortúnios e da finitude da vida. Quanto a esse vazio, não há terapia, muito menos ter a pia cheia de prato sujo que dê jeito. Ele nos seguirá até o fim. Ou aceitamos e lidamos com ele, ou vai doer mais.
Encerrada essa única sessão de terapia, quero dizer, agora com humildade, pois nunca se sabe, que continuo de alta. O trato com a psicóloga foi o mesmo. Se eu sentir necessidade, pedirei socorro de novo, e de novo e de novo...
Já falei para ela que acho um desaforo comigo mesma precisar de psicóloga durante muito tempo. Eu quero caminhar com minhas próprias pernas e, só de vez em quando, pedir apoio. Não me dou ao luxo de sustentação emocional perpétua. Fora que o dinheiro tá pouco e eu quero economizar para comer uma comida gostosa todo dia e pagar o meu café diário. Senão, não sobra. Tenho minhas prioridades.
Agora vou confessar uma coisa. Eu tenho mesmo é vontade de ser amiga dessa minha psicóloga e poder convidá-la para vir tomar um vinho em minha casa, dar risadas e falar sobre coisas de mulher e de homens. Porque eu que não sou muito chegada a chamegos com mulher, até que gosto muito dela.
Pensando melhor, acho que isso não daria certo não. Uma amizade entre nós nos aproximaria muito a ponto de eu não ter condições de saber quando ela estivesse me analisando.
Além do mais, o dia em que eu precisasse de socorro teria que pagá-la na condição de psicóloga e eu não posso admitir que uma amiga cobre para me dar conselhos, nem receber conselhos de uma psicóloga sem pagá-la, por uma questão de justiça.
Sendo assim, ou a psicóloga, ou a amiga. Nem sempre é possível ter tudo.
Mas, como sei dos altos e baixos da vida, eu vou ficar é com o que já está garantido. Eu quero é a profissional que já conhece um pouco de mim e das minhas queixas e está disposta a me receber de braços abertos mesmo quando quero sentar e tomar o lugar dela.
Vai me entender... Quem sabe Freud me explica?
Querer sentar na cadeira da psicóloga foi ótimo 😅... imaginei toda a cena, foi hilário. Não sei se o texto era pra ter um pouco de humor, ou se surgiu inesperado.. só sei que me vi de camarote neste episódio do seu dia. Ah, e o engraçado foi que antes da psicóloga dar o feedback, você mesma contou a história e deu a conclusão, genteeee isso é muito pra mim 🤣🤣. Tá mas vamos falar sério agora, o momento que relata de que não somos heróis de ninguém é importante, pois às vezes a carga fica muito pesada, tem dias que me sinto cansada por tentar dar jeito na vida dos outros, aliviar a dor, um problema. Acredito que podemos sim sermos canais de bênçãos na vida do próximo para auxiliarmos, mas não para sermos Deus Salvador de todos.
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Nossa, Lorrane. Seu comentário me emocionou. Espero que esse texto tenha ajudado você a refletir sobre essa "carga" que todos nós carregamos em algum momento da vida. Precisamos nos colocar numa redoma de vez em quando, senão sucumbimos. Se você viu humor no texto é porque ele tem humor, rs.
ExcluirObrigada pela leitura e pela reflexão. Beijos.